Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bolsonaro sob o olhar de um jornalista além-mar

Joaquim Vieira. Foto: Divulgação

Jornalista, ensaísta e documentarista, autor de biografias sobre Mário Soares, José Saramago entre outros, procura pelo livro Bolsonaro: Um Capitão no Planalto contar parte da trajetória de Jair Bolsonaro, sob a ótica de um observador de um país-irmão situado a 7.482 km ou algo em torno de dez horas de avião. O distanciamento talvez tenha permitido que o autor tratasse de maneira mais direta, sem devaneios ou dissimulações, algumas passagens que estão registradas na obra, como a intervenção feita em plenário na Câmara dos Deputados, em 2014, sobre o Dia Internacional dos Direitos Humanos no Brasil, em que na época o então deputado federal, afirmou que a data é, na verdade, o dia internacional da vagabundagem. Bolsonaro, como sempre enfático, esbravejou que “os direitos humanos no Brasil só defendem bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e até corruptos”.

Cofundador e presidente do Observatório da Imprensa – Centro de Estudos Avançados de Jornalismo em Portugal nos anos 1990, junto com Alberto Dines e outros profissionais (durante o período foi organizador também de vários congressos internacionais de jornalismo de língua portuguesa), teve ainda atividade como professor universitário convidado em cursos de comunicação social na realidade portuguesa.
A obra é uma iniciativa da newsmagazine semanal SÁBADO, e faz parte da coleção Democracias ou Ditaduras, composta por quatro livros sobre políticos contemporâneos: Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Kim Jong-un.

Pelos doze capítulos da obra, o autor parte do episódio controverso ocorrido em Juiz de Fora, MG, ocasião em que Bolsonaro sofreu um suposto atentado (vídeo que contesta a versão está disponível na plataforma YouTube com pouco mais de 57 minutos, “A Facada no Mito”), ao capítulo final que denomina “Um país sem rumo”, em que destaca o momento do “espetáculo de um Bolsonaro com dificuldades de envergar a máscara de segurança antiviral, numa conferência de imprensa dedicada à covid-19”, o que, de acordo com o autor, reflete bem a imagem de um líder incapaz de encontrar um rumo. Joaquim reitera a condição de Bolsonaro já naquele momento com a citação do New York Times, que classificou em agosto de 2019, como o “menor, mais aborrecido e mais mesquinho de todos os líderes”.

No primeiro capítulo, intitulado “O efeito de Juiz de Fora”, Vieira estabelece uma comparação com Mário Soares na campanha presidencial portuguesa de 1986, ao citar o episódio de uma agressão na Marinha Grande que segundo o autor, catapultou o líder socialista para a “segunda volta” (segundo turno) e, posteriormente, a vitória. Também proporciona uma interessante cronologia de acontecimentos desde que Fernando Henrique Cardoso, chegou ao Planalto em 1995 ao longo do capítulo “A esquerda no poder”.

Faz um compilado das frases de efeito e bravatas desde que Bolsonaro se lançou na vida política, principalmente as que o ligam diretamente à apologia da tortura e aos preconceitos às minorias. Lembra, inclusive, a título de curiosidade, que um dos requerimentos que tramitou no Congresso Nacional somou-se aos quase 30 pedidos de cassação de mandato que já “tinham visado o parlamentar do Rio de Janeiro: o arquivamento”.

No capítulo “O capitão rebelde”, Vieira acentua parte da trajetória conturbada de Bolsonaro, quando situa alguns momentos e frases explosivas cunhadas pelo então tenente em entrevistas e artigo publicados na revista Veja da ocasião, relacionados com a Operação Beco sem saída: “Nosso Exército é uma vergonha nacional, e o ministro está se saindo como um segundo Pinochet” (o ministro do Exército no período era Leónidas Pires Gonçalves). No texto, fica implícita a influência baseada em outra obra sobre o presidente brasileiro escrita pelo jornalista brasileiro Luiz Maklouf Carvalho, recentemente falecido, “O cadete e o capitão – a vida de Bolsonaro no quartel”. Em ambas, estão relatados os meandros da detenção do então tenente, da condenação em primeira instância e posterior acórdão para livrá-lo da expulsão do Exército, quando ingressou e deu início a vida política.

O livro não demonstra fôlego para revelar aspectos que qualquer brasileiro bem informado já não saiba, mas é com certeza um relato para o leitor português se situar bem a respeito do que ocorre em terras brasilis, bem como uma boa obra de introdução para brasileiros que não sabem sobre detalhes básicos da vida do atual governante brasileiro.

Profissional multimídia

Antigo estudante do Instituto Superior Técnico, e ativista contra a ditadura (motivo da sua prisão em 1972, julgamento em Tribunal Plenário em 1973 e exílio no início de 1974), Joaquim Vieira tornou-se jornalista em meados dos anos 1970, após estudos em Paris, no Centre de Formation et Perfectionnement des Journalistes. Em 1975, foi admitido como repórter na RTP, onde permaneceu até ingressar, já em inícios de 1981, no semanário Expresso, em que ocuparia o cargo de diretor-adjunto, de 1989 a 1993. Depois de uma breve passagem pela revista Visão, voltou à RTP para assumir, entre 1996 e 1998, o cargo de diretor-adjunto para os Programas. Foi diretor da revista Grande Reportagem, em 2004-2005, e ombudsman do jornal Público, em 2008-2009.

Além da sua atividade nos jornais e na televisão, é autor de uma obra diversificada, de caráter histórico, político e biográfico. Para o Círculo de Leitores, assinou a coleção em dez volumes, denominada Portugal Século XX – Crónica em Imagens, e dirigiu uma coleção de 18 fotobiografias (de entre as quais escreveu os volumes sobre António Salazar, Marcelo Caetano, Almada Negreiros e Joshua Benoliel), assim como os cinco volumes de Crônica de Ouro do Futebol Português.

A entrevista

Segue a entrevista realizada com o autor sobre a obra e outros temas pertinentes no final de fevereiro deste ano:

Boanerges Lopes – O que o motivou a escrever sobre a trajetória de Bolsonaro?

Joaquim Vieira – Não houve uma motivação. Fui convidado por um editor para escrever uma biografia inserida numa série de livros sobre líderes políticos atuais chamada “Democracias ou ditaduras”, e a escolha que me foi dada entre o presidente brasileiro e Kim Jong-un. Preferi escrever sobre Bolsonaro do que sobre o líder norte-coreano.

BL – O que mais o impressionou na história de vida de Bolsonaro?

JV – Bolsonaro percorreu um insólito caminho político até chegar ao Palácio do Planalto, algo totalmente imprevisível em pessoa de tão radicais atitudes. Impressionou-me esse trajeto e a intuição que teve ao sentir que era chegado o momento para lançar a sua cartada presidencial, quando ninguém acreditava que tivesse condições para vencer a corrida eleitoral.

BL – Como avalia brevemente a realidade política brasileira em período tão turbulento e sob a batuta de um evidente negacionista, o que em muito tem prejudicado o combate à pandemia e a uma crescente rejeição por parte da sociedade?

JV – Acho a realidade política brasileira muito gelatinosa. Políticos e partidos lutam mais por alcançar o poder com manobras oportunistas e alianças bizarras do que por defender ideias e programas consistentes e coerentes. Bolsonaro só ganhou as eleições por demérito do PT, que não se demarcou das acusações de corrupção que afetaram o partido nos últimos anos da sua governação, resultando na desilusão e no afastamento de muitos eleitores. E apesar das evidentes insuficiências do atual presidente, com desastres tão graves como a gestão da pandemia ou a desregulação da proteção da floresta amazônica, entre outros, calculo que ele tem possibilidades de voltar a ganhar um novo pleito presidencial, pois ainda não se configura uma alternativa política sólida e credível, e o PT continua a apostar em pessoas e fórmulas do passado. Assusta-me um novo mandato de Bolsonaro, que será terrível para o Brasil e para o resto do mundo.

BL – Pela sua experiência, não só jornalística, mas de vida, para onde caminha o Brasil?

JV – Apesar do seu enorme potencial, o Brasil continua a ser aquele “país de futuro” — como o classificou Stefan Zweig vai para umas oito décadas — que nunca mais vê o futuro tornar-se presente. O PT perdeu uma oportunidade de ouro para transformar o Brasil na terra de progresso que o povo brasileiro merece. Foi um momento histórico que não se vai repetir. Não vejo ninguém no Brasil capaz de empreender essa enorme tarefa. Mas tenho confiança de que haja alguém entre as novas gerações capaz de pôr mãos à obra. É apenas um desejo, que gostaria de ver transformado em realidade, mas sei que não será no curto ou médio prazo.

BL – Relembre um pouco sua experiência de cofundador do Observatório com o Dines.

JV – Conheci o Alberto Dines em Lisboa no início dos anos 1990, era eu diretor-adjunto do semanário Expresso, do grupo Balsemão, e ele consultor editorial do mesmo grupo. Descobrimos uma grande afinidade na forma como encarávamos o jornalismo, as suas regras e as suas práticas, e essa proximidade traduziu-se na fundação, com outros companheiros de vida mediática, do Observatório da Imprensa português, em 1994. Entre outras iniciativas, organizamos, com a contribuição de entidades brasileiras ligadas aos media (ou à mídia, como aí se diz) Congressos Internacionais do Jornalismo de Língua Portuguesa no Rio de Janeiro em 1994, em Lisboa em 1997, em Macau em 1999, no Recife em 2000 e de novo em Lisboa em 2005. Recordo-me de que, para o congresso do Rio, eu e ele organizamos um pequeno léxico de termos usados diferentemente pelos jornalistas em Portugal e no Brasil, que foi distribuído a todos os participantes. Quando o Dines regressou ao Brasil, levou consigo a experiência portuguesa e fundou o Observatório da Imprensa brasileiro, dispondo de meios e projeção que nós em Portugal nunca tivemos, tornando a congênere do outro lado do Atlântico um grande sucesso. Até ao fim, o Dines fez parte do Conselho de Fundadores do Observatório da Imprensa português. Lamento muito a perda deste amigo e grande jornalista.

***

Entrevista concedida à Boanerges Lopes, jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.