Foi numa pequena cidade paulista que me chegou a notícia da libertação de Lula. Um desses municípios de menos de 5 mil habitantes, condenados a desaparecer caso seja aprovado um recente projeto do presidente.
E ao ver Lula livre, na televisão, me vieram da memória as estrofes de uma velha marchinha de Carnaval de quando eu ainda era criança. Uns versinhos bem simples, quase infantis, comemorando o retorno de Getúlio Vargas ao poder, do qual tinha sido derrubado depois de quinze anos de ditadura.
Bota o retrato do velho outra vez,
bota no mesmo lugar.
O sorriso do velhinho faz
a gente trabalhar…
Getúlio, também chamado de “pai do pobres”, era nacionalista e havia sistematizado o direito dos trabalhadores à aposentadoria e criado a Petrobras. Vamos esquecer agora seus defeitos, que foram muitos, para lembrar que a independência brasileira no setor do petróleo garantiu ao Brasil seu desenvolvimento, enquanto a aposentadoria deu aos trabalhadores a garantia de uma merecida segurança na velhice, mesmo sendo de valor mínimo para a grande maioria.
Vargas foi o criador das primeiras garantias sociais à classe trabalhadora, Lula foi o presidente das grandes conquistas sociais. Essa identificação entre os dois foi, sem dúvida, a detonadora da marchinha carnavalesca em minha memória.
Lula retorna em boa hora. Bolsonaro, com seu ministro Guedes, continua destruindo a estrutura do Estado, aplicando as orientações de privatização da Escola de Chicago, que são as de reduzir ao máximo a máquina estatal e ampliar o campo do capital, ignorando as consequências sobre o povo.
O desmonte do Estado brasileiro está avançado e, em pouco tempo, a privatização tornará a economia brasileira semelhante à do Chile. Vendidas nossas riquezas ao capital internacional, o destino do Brasil como país independente estará comprometido para sempre.
Os jornais falam em risco de polarização e numa nova aglutinação das forças de direita e extrema-direita contra Lula. Não acredito numa repetição de novembro do ano passado. A maioria conquistada faz um ano por Bolsonaro já se diluiu com as primeiras decepções.
Lula é o único líder capaz de reunir com o PT as diversas tendências da esquerda. Seus dois mandatos de centro-esquerda, mesclados de centro-direita, durante os quais manteve seus compromissos econômicos com a direita, não assustam. Em compensação, o despreparo de Bolsonaro gera inquietações.
Existe, porém, um fator mobilizador a se considerar com cuidado. Nestes últimos cinquenta anos, os Estados Unidos montaram no Brasil uma bem azeitada máquina eleitoral, que reúne um terço do eleitorado brasileiro. São as igrejas ditas evangélicas, que, sob o manto da pregação da doutrina cristã, utilizam o pretexto do combate à corrupção e amedrontam o eleitorado evangélico com o risco do comunismo para transformá-lo num instrumento de apoio ao liberalismo norte-americano, capaz de levar à destruição do Estado social e à entrega de nossas riquezas, pela privatização, aos grupos econômicos estrangeiros.
Os evangélicos se revelaram um eleitorado dócil e ingênuo, numa versão moderna do eleitorado de cabresto. Se, hoje, a Igreja Católica tem retomado a linguagem do evangelho dos pobres, cometeu praticamente uma autodestruição ao ter abandonado, durante as últimas décadas, o evangelho social, deixando assim um flanco aberto para a penetração do populismo evangélico no Brasil. A doutrina evangélica atual ilude seus seguidores com uma espécie de adaptação da mensagem cristã ao sistema capitalista de investimentos com o engodo do evangelho da prosperidade.
Na expectativa da capitalização de sua fé nas bolsas de valores das promessas bíblicas desvirtuadas pelos pastores, os fiéis se tornam submissos, abrem mão de seus direitos sociais e abandonam a luta pelas conquistas sociais. Acreditam piamente que o reconhecimento de seus direitos virá só depois da morte. Embora isso possa parecer absurdo, uma grande parcela dos pobres brasileiros acredita hoje nessa opção, verdadeiro conto do vigário, ou com a evolução do significado das palavras, numa verdadeira vigarice dos pastores.
Retornando à libertação de Lula, resta-nos esperar que dela resulte uma reunião de todas as forças de esquerda. Porém, ao mesmo tempo, será importante denunciar-se a atual utilização da mensagem evangélica por pastores e igrejas comprometidos com grupos financeiros e capitais norte-americanos, cujos objetivos nada têm de religiosos. Esses grupos constituem, hoje, um bloco monolítico contra as conquistas sociais. Ao mesmo tempo, esses grupos estão utilizando a ignorância e a falta de informação de 30% da população brasileira (logo serão 50%) para fazer uma releitura da nossa formação, a fim de destruir a cultura brasileira.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.