Nos refeitórios das Forças Armadas existem três divisões, com algumas variações: a dos soldados, a dos graduados (cabos e sargentos) e a dos oficiais. O cardápio básico é igual para todos. Mas vai mudando conforme sobe o posto na hierarquia militar. Duas coisas são certas: os soldados não bebem uísque 12 anos ou cerveja. E também não comem picanha e muito menos bacalhau. Salvo em ocasiões especiais. Se bem lembro dos meus tempos de serviço militar obrigatório, no 18º Regimento de Infantaria (18º RI), a comida era simples. Mas nutritiva. Bebidas alcoólicas eram proibidas dentro do quartel, dava cadeia. Lembro-me que entre os recrutas corria uma piada contra a infantaria. Dizia que os infantes eram os “sem cérebro”, porque eram os que entravam em luta corpo a corpo com a tropa inimiga. Vamos aos fatos. Nas últimas semanas, as Forças Armadas se envolveram em casos ruidosos de compra de leite condensado, chicletes, pizzas, uísque 12 anos, mais centenas de garrafas de cerveja e outras iguarias culinárias. Todas somam alguns bilhões de reais — matéria disponível na internet.
Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro disse que o leite condensado era para a “imprensa enfiar no rabo”. O negócio é o seguinte. Bolsonaro vai passar. Vai tentar a reeleição e seja lá qual for o resultado, ele vai seguir a vida dele. Mas as Forças Armadas vão permanecer, porque são uma instituição de Estado. Portanto, precisam dar as devidas explicações sobre o que está acontecendo. Por quê? Na história do Brasil, a participação das Forças Armadas vão muito além das conspirações nos quartéis que resultaram no golpe militar de 1964. Por muito tempo, os filhos dos agricultores pobres, principalmente nos estados do Sul do Brasil, tinham duas chances para estudar: as Forças Armadas ou os seminários da Igreja Católica. Ainda nos dias de hoje o Exército, a Marinha e a Aeronáutica são formadoras de mão de obra altamente especializada. As famílias não respeitavam os militares porque eles tinham armas. Mas porque ajudaram na educação e na profissionalização dos seus filhos.
Em 1964 houve um rompimento entre as Forças Armadas e a sociedade civil por conta do golpe militar. Com a democratização do país, em 1985, os militares recuperaram o respeito dos brasileiros. E agora? Eles estão em uma encruzilhada, muito perigosa por sinal. De um lado há um grupo de generais e graduados que somam 6 mil militares que fazem parte do governo. Oficialmente as Forças Armadas não integram o governo. Mas de fato usam o seu prestígio para fortalecer na opinião pública a imagem de que é tudo a mesma coisa. A liberdade de imprensa é um direito garantido pela Constituição. Logo, quando o presidente manda os jornalistas enfiarem no rabo o leite condensado e as Forças Armadas se calam, significa que o insulto de Bolsonaro é a resposta oficial. Toda essa história em outros tempos figuraria nos jornais entre os assuntos exóticos criados por algum burocrata governamental. Agora não é mais assim. Por quê? O país está vivendo uma pandemia causada pela Covid-19. Já são 230 mil brasileiros mortos pelo vírus e mais de 10 milhões de contaminados. Há mais de 14 milhões de desempregados. Há carência de vacinas por conta do negacionismo referente ao vírus do presidente que o seu ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo, transformou em política de governo. Pessoas infectadas estão morrendo asfixiadas por falta de oxigênio nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará. Essas mortes têm as digitais de Bolsonaro e de Pazzuelo.
Dentro desse contexto todo, a história de uísque 12 anos, cerveja, bacalhau, picanha, leite condensado, chiclete e outras iguarias são manchetes nos jornais. E a única explicação oficial que existe a respeito é o insulto do presidente dizendo que o leite condensado é para os jornalistas enfiarem no rabo. Se existe algum setor nas Forças Armadas que é simpático ao delírio do presidente da República em repetir 1964 é bom dar uma olhada pela janela. Em 1964, o Brasil era um país agrícola, onde a maioria da população era rural. Hoje é um país industrializado, com a maioria vivendo nos centros urbanos. E perfila-se entre as 10 principais economias do mundo. Lembram das Manifestações dos 20 Centavos, em 2013? Eu fiz cobertura do movimento. O que aconteceu lá vai ser brincadeira de criança perto do que pode acontecer se houver uma tentativa de golpe. Tudo que escrevi não é “achismo” ou opinião. São fatos que já publicamos. E também informações que tenho de dois dos meus livros: Brasil de Bombachas (edições de 1996, 2011 e 2019), que descreve o povoamento das fronteiras agrícolas, e Os Infiltrados: Eles eram os olhos e os ouvidos da ditadura, que escrevi em parceria com os repórteres Carlos Etchichury, Humberto Trezzi e Nilson Mariano.
Ninguém pode prever o que vai acontecer no governo federal na próxima semana. Tal é a velocidade fantástica dos acontecimentos. O presidente da República pensa uma coisa quando acorda, outra diferente no almoço e uma totalmente nova no jantar. Discute os problemas com os seus assessores aos gritos dentro do gabinete presidencial. As pessoas que são lá chamadas não sabem se sairão com os seus empregos. Toda a administração federal está com problemas. As coisas simplesmente não andam, por mais simples que sejam, como fazer uma perícia médica no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Toda a força do governo está sendo drenada para as maquinações com o objetivo de reeleger o presidente em 2022. Se não existisse uma pandemia, em que a carência de vacinas deixa as pessoas apavoradas, temendo serem a próxima vítima do vírus, essa confusão toda não causaria grandes transtornos na vida do brasileiro comum. Mas a pandemia existe e por conta dela a paciência da população está curta. Se não houver uma explicação séria e honesta sobre o que aconteceu no caso das compras das Forças Armadas, essa paciência pode se esgotar. E o que vai acontecer se a paciência da população se esgotar? Sabe-se lá. Mas boa coisa não será.
Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.