Escrever sobre a Venezuela é um desafio — desde a entrada em um país que não concede visto para jornalistas até garimpar fontes de informação que não sejam viciadas na sociedade mais polarizada do continente.
Por trás das notícias sobre o país, há jornalistas que tentam com muito esforço separar o joio do trigo e prover uma cobertura “honesta”, como descreve Marsílea Gombata, repórter do jornal Valor Econômico. Na sua trajetória, a jornalista já cobriu Haiti e El Salvador, mas a Venezuela, tema do seu doutorado, é a “cereja do bolo” da cobertura de América Latina.
Nesta entrevista realizada na Casa Pública, no Rio, ela conversou com Yan Boechat, jornalista com 20 anos de carreira que tem se especializado em coberturas internacionais em países como Afeganistão, Tunísia, Líbano, Palestina, Síria e Iraque. Por causa da polarização, Yan desistiu das fontes oficiais ou da oposição venezuelana: “No final das contas, você vai ter duas narrativas se confrontando, e as duas estão distantes da realidade”, diz. Leia os principais trechos da entrevista.
Natalia Viana – Eu queria começar falando da capa da revista Época de 19 de outubro, sobre a crise de saúde da Venezuela. A reportagem é assinada por você, Yan, e a manchete era “A ditadura agoniza”. A gente sabe que nem sempre é o repórter que escolhe a manchete. Você concorda?
Yan Boechat – Eu acho o termo um pouco forte, “A ditadura agoniza”. Acho que entre um Estado democrático e uma ditadura, há uma vasta área cinzenta. É difícil classificar a Venezuela como uma ditadura plena ou uma ditadura clássica. De certa forma, ainda há liberdade de expressão. Existem jornais opositores que continuam fazendo quase um jornalismo político opositor, não muito comprometido com a verdade, às vezes. Por outro lado, você tem um processo muito forte de cerceamento dos veículos de comunicação que são opositores ao governo. Este ano eles fecharam 50 rádios, vários jornais têm dificuldade de acessar papel de imprensa para continuar circulando. Fecharam algumas televisões. Mas classificar o chavismo como uma ditadura clássica eu acho extremamente complicado. Com certeza ele vai se tornando cada vez mais totalitário.
Marsílea Gombata – Eu acho que a Venezuela poderia ser classificada como o que se chama de “democracia iliberal”: tem vários elementos de uma democracia, eleições, tem liberdade de expressão, mas tem um cerco forte à oposição. Quando o Maduro assumiu, havia 15 presos políticos. Em agosto de 2017, esse número era 620. Diminuiu, agora está em 430. E aí a gente põe nesse pacote estudantes, prefeitos, manifestantes. Mas não dá para falar que é uma ditadura. Fico feliz de o Valor não pedir pra eu escrever “ditadura”, porque eu não concordo. Mas acho que tem vários elementos que não condizem com a democracia.
Natalia Viana – Um desses elementos é justamente o tratamento à imprensa e a perseguição aos jornalistas. Você passou por uma situação este ano, você foi detida…
Marsílea Gombata – Noventa e nove por cento dos jornalistas que vão para a Venezuela vão sem visto. O brasileiro não precisa de visto para ir para a Venezuela. Quando perguntam qual o motivo da visita, você fala “turismo”, “vou visitar um amigo”. E lá fui eu em maio, Dia das Mães. Cheguei e fui bastante ingênua, eu levei um colete à prova de balas e um capacete. Quando a minha mala passou pelo raio-x: “O que é esse capacete?”. Eu nem lembro mais o que eu falei. Ninguém é trouxa, começaram a fazer perguntas, devassaram a minha mala. Mexeram no computador, gravador, um monte de bloquinho. Coisas que jornalistas usam. Eu acabei sendo “inadmitida”, que é uma palavra mais suave do que deportada. Fiquei 24 horas detida em Miquetía, no aeroporto. Não fiquei em uma salinha ou algemada, mas sempre com segurança do meu lado. Pegaram todos os equipamentos de segurança e também computador, celulares… tudo. Fiquei meio incomunicável. Nessas horas sempre aparecem os anjos da guarda, e o segurança da madrugada me deixou usar o celular dele. Entrei no Facebook, e o meu chefe me ligou.
Natalia Viana – Yan, voltando à reportagem de capa da Época, você comentou que há muito tempo uma matéria não o tocava tanto.
Yan Boechat – Fui fazer uma matéria para falar um pouco sobre a situação da saúde. Não só a saúde pública, mas todo o sistema de saúde da Venezuela, que sofre um problema crônico de escassez de produtos; não só de medicamentos, mas de insumos hospitalares básicos. Eu fiquei muito impressionado porque as pessoas não têm acesso a coisas muito simples. Antibiótico, uma luva, gaze. Tem gente morrendo porque não consegue comprar um antibiótico que a gente consegue comprar aqui com muita facilidade. Os médicos relatando tudo: “Todo dia morre cinco aqui comigo e eu não posso fazer nada”. Pacientes com HIV que estão sem tomar antirretroviral… Eu fiquei muito impressionado porque são coisas muito simples. Você vê as pessoas morrerem por falta de medicamento qualquer ou incapacidade de se fazer uma cirurgia simples. O país não tem dinheiro, não tem moeda forte para importar tudo o que precisa. E precisa importar tudo, porque eles não produzem nada.
Depois de 25 anos teve um surto de difteria no interior. Agora surgiu um novo surto de sarampo. E a malária, como não tem mais remédio para fazer o tratamento básico… Ano passado eles devem ter registrado cerca de 250 mil casos. Um recorde na história. E este ano deve duplicar. No caminho entre Caracas e Boa Vista é realmente impressionante, tem muita gente doente, nos hospitais, morrendo. E, para piorar, tem uma rede de traficantes de remédio no interior que comercializa principalmente esse remédio da malária, que é o remédio mais cobiçado. Eles agora têm banquinhas, como as banquinhas de camelô aqui no Rio.
Natalia Viana – O que se fabrica, afinal, na Venezuela?
Marsílea Gombata – Tinha uma fabricação de papel, cartão, coisas básicas, plástico, indústria petroquímica. Havia uma fabricação, inclusive, de açúcar, ou mesmo de arroz, que está cada vez menor. Eles têm importado até da Colômbia e do Brasil. Então, foi diminuindo, e isso não é uma coisa do chavismo. A indústria da Venezuela foi encolhendo porque o petróleo foi ganhando um protagonismo cada vez maior na economia. Isso é um processo que vem dos anos 1930. Hoje, do que a Venezuela exporta, entre 92% e 96% é petróleo. E é maravilhoso quando se tem um barril a US$ 100. Mas hoje está bem menos, porque o petróleo venezuelano tem uma qualidade um pouco inferior, é muito pesado. Então, no sentido de produção industrial, está ruim por vários motivos. O parque industrial diminuiu: hoje é 30% do que era em 2000. As indústrias que existem operam a 30% do que podem. A esperança deles é que mude o governo para mudar a percepção econômica. Mas, se a oposição chegar ao poder, não vai ser um passe de mágica.
Yan Boechat – A Venezuela tem um problema de fluxo de caixa, principalmente. Ela não consegue gerar uma moeda forte para suprir a demanda de terra e pagar a dívida. Ela prefere pagar a dívida externa a importar produtos para abastecer o mercado interno. E, ao mesmo tempo que eles estão pagando os papéis, não estão pagando as dívidas comerciais. E a Venezuela está tirando a menor quantidade de petróleo dos últimos 25 anos. O Brasil está tirando mais petróleo do que eles, por incrível que pareça. No caso dos remédios, eles têm uma dívida grande com a indústria farmacêutica, que não importa mais nada. Não só a americana, a europeia também, de vários países. E estão trazendo agora da Rússia bastante coisa, de Cuba, da Índia.
Natalia Viana – Eu fui para lá em maio. Naquela época havia protestos todos os dias. Eu fiquei muito surpresa porque, acompanhando as notícias, a impressão era que o Maduro ia cair. Eu fui lá para cobrir a queda do Maduro. E não era nada disso, não é um governo que vai cair fácil. E fiquei muito surpresa de ver como havia empresas, como nos bairros ricos as pessoas estavam nos seus cafés tomando cappuccino, como havia pão doce. Havia comida. Tinha supermercado. Eu vi um grande descompasso entre o que eu vi e o que eu lia nas notícias. Qual a visão de vocês sobre a cobertura internacional?
Yan Boechat – Logo que cheguei, foi em um momento em que a Assembleia Constituinte praticamente dissolveu o Congresso. E eu tive essa mesma impressão, eu estava numa área rica de Caracas, Altamira. É um descompasso mesmo, porque você vê essas pessoas brigando contra a “ditadura”, mas no momento em que o Congresso é dissolvido todo mundo está numa vida relativamente normal. A vida segue normal e de certa forma as pessoas se acostumam a viver nesse processo. E eu concordo contigo: a gente reforça muito os pontos de maior contraste com a nossa visão e acaba esquecendo de colocar os pontos de menor contraste, que ajudam a contar uma história mais ampla.
Marsílea Gombata – Mas eu vejo um paralelo. Eu sou paulistana. Ontem eu estava lendo uma matéria na editoria de cotidiano do Globo sobre a Rocinha. Se eu não conhecesse o Rio, lendo aquela página, você não vai para o Rio porque aquilo é guerra. É uma narrativa de guerra.
Por um lado, o nosso trabalho é mostrar o que está acontecendo fora do comum. Notícia é o fora do comum. Acho que a cobertura lá é um desafio porque você fica ouvindo os dois, três lados. Mas é tudo muito polarizado. Você tem que checar uma informação às vezes em três lugares e ligar para alguém que está lá. Os jornais opositores estão militantes. Querem derrubar o governo a qualquer custo. Os do governo são aquela coisa exaltando que a Venezuela é um dos países menos desiguais da América Latina. De fato é, mas também que padrão a gente está usando?
Yan Boechat – Eu fui para lá no ano passado e senti muita dificuldade de cobrir e mesmo de fazer entrevistas. Porque você fala com uma pessoa do governo, tem um mundo aqui. Você fala com a oposição, é um mundo paralelo. Dessa vez que eu fui para lá, eu decidi não entrevistar nenhuma fonte oficial, só contar a história das pessoas. No final das contas, você vai ter duas narrativas se confrontando, e as duas estão distantes da realidade. A oposição também utiliza todos os mecanismos possíveis para demonizar o governo, e vem fazendo isso desde 1999. Por isso ela tem tão pouca credibilidade hoje.
Natalia Viana – Agora, como jornalista individual, como você consegue fazer a diferença?
Marsílea Gombata – Fazer diferença é fazer um trabalho honesto. Seria ruim ir lá e ficar só vendendo o discurso da oposição ou só do governo. O foco do Valor é mais o setor produtivo. Falar com essas pessoas, mas confrontar com dados macroeconômicos ou indicadores. Você indo lá sem preconceito… É difícil, né? Porque não somos robôs, somos pessoas. Você ir um pouco de peito aberto e fazer um trabalho honesto que traga informação.
Yan Boechat – Eu adotei a tática de tentar mostrar a vida cotidiana. Como é que as pessoas estão vivendo, independentemente de que lado elas estejam ou não. Eu tenho tentado fugir das discussões políticas maiores porque eu acho que o caso que a Venezuela vive hoje ela extrapola a questão ideológica. Resumindo tudo ideologicamente, você não consegue explicações para as outras áreas.
Natalia Viana – Yan, sobre o que as pessoas estão vivendo… Teve uma matéria sua que saiu na BBC Brasil que trata dos meninos de rua de Caracas. Você pode contar o que você descobriu?
Yan Boechat – Há uma série de problemas sociais que eles não tinham, ou tinham em pequena escala. E estão crescendo muito por conta da crise. Um deles é a população de crianças de rua, que tem crescido bastante nesses últimos anos. Essa população de rua foi de certa forma cooptada pela classe média e pela oposição para fazer parte dos protestos. Não só crianças, é o pessoal que eles chamam da “resistência”. Moradores de áreas periféricas, jovens, que recebiam comida, grana. Mas no caso das crianças especificamente, elas passaram por um processo — é até uma palavra ruim —, um processo de “empoderamento” por parte dessa classe média, que passou a alimentá-los. Passou a dar roupa, carinho. Eles mesmos contam isso: “Nunca me deram carinho na vida. Esse pessoal tinha medo de mim e vem conversar comigo”. Então, essas crianças passaram a ter um papel importante da dinâmica nos protestos.
Natalia – Eram eles que ficavam na linha de frente?
Yan Boechat – Não só as crianças de rua. Mas no geral jovens e a população mais pobre. Algumas vezes por ideologia, por acreditar naquilo, e muitas vezes por receber algumas benesses. Os protestos estão muito concentrados nas áreas nobres de Caracas. Então, quando acabaram os protestos, a classe média começou a ficar incomodada de ter essas crianças na área deles, e foram procurar algumas ONGs que têm tratamento direto com eles. E conseguiram montar um acordo com os centros comerciais das áreas ricas. As crianças foram para áreas debaixo de viadutos, e os centros comerciais passaram a dar almoço e jantar, com a garantia de que eles não entrassem nos centros. Eles deixaram de ser heróis e voltaram a ser párias.
Júlia Tavares – De que forma as agências de notícias internacionais não têm um interesse ideológico em propagar que o governo Maduro vai cair?
Marsílea Gombata – Eu lido com agências todos os dias. A gente tem que ficar refém delas. Não temos correspondente em todo lugar no mundo, e a gente compra esse serviço noticioso. Sempre me pego pensando que a América Latina deveria ter uma agência própria, porque sempre são jornalistas da Reuters, da Bloomberg… Um jornalista alemão, britânico, ele cai na América Latina e fala “realmente, esse cara é um ditador”, porque é muito diferente da realidade dele. Mas tem que ler com parcimônia. Você liga para suas fontes lá dar uma olhada. Não sei se existe um plano de caso pensado — “quero que o Maduro caia”. Mas acho que eles ficam tão assustados com o que é muito diferente da realidade deles que tendem a ressaltar ainda mais o que eles chamam de ditadura, autoritarismo.
Natalia Viana – Você acha que a cobertura delas é ruim?
Marsílea Gombata – Não diria ruim. Mas você tem que dar uma filtrada porque a gente é América Latina falando sobre América Latina. Eles são América do Norte falando sobre América Latina, ou Europa falando sobre América Latina. É diferente.
Yan Boechat – Eu acho que nem sempre as agências ou os jornais têm uma diretriz muito clara. Mas o repórter vai se acostumando e vendo que determinadas matérias que ele faz emplacam mais do que outras. Lentamente, nós todos vamos sendo empurrados, de uma forma talvez não tão explícita, para a maneira que o seu empregador pensa. Por mais que você tenha uma posição pessoal distinta — e talvez essa não seja uma coisa muito clara, preto no branco —, você fazer uma matéria que é contra o que o jornal pensa não vai emplacar tanto. É uma coisa mais sutil.
Natalia Viana – Lá no começo, Yan, você falou que acha que não é uma ditadura, mas que o chavismo agoniza. Você vê alguma solução para essa situação?
Yan Boechat – A solução é financeira. Dinheiro. Se tiver dinheiro, o regime vai sobreviver com certeza. Eu acho que isso está um pouco na mão da Rússia e da China, mais da Rússia do que da China, em manter não só fluxo de capital, mas também alimento, remédio… Esses itens básicos de que o país precisa para não entrar em colapso absoluto. É difícil imaginar que a Venezuela não vai entrar em default daqui a um ano ou dois. Tem pouco dinheiro circulando, pouco dólar. Então eu acho que a Rússia tem um papel muito especial dentro desse processo. É interessante para a Rússia ter uma Venezuela? Talvez sim. Mas vale a pena comprar esse barulho na América Latina, que saiu da agenda há quase duas décadas?
Natalia Viana – O que significa para a América Latina o ocaso ou a permanência do chavismo?
Marsílea Gombata – É experiência de um tipo de esquerda que a América Latina sonhou por muito tempo. E a Venezuela conseguiu implementar. Teve uma série de consequências e preços altos. A esquerda da região tem muita dificuldade em criticar a Venezuela porque é uma decepção pessoal. E eu acho ruim, porque eu acho que, quando você critica, você melhora. Esse argumento de que criticando você faz o jogo da direita é péssimo porque todo mundo fica calado e ninguém pode falar nada. Serve como experiência. Não somos a Venezuela, mas podemos aprender com coisas boas e ruins do chavismo. Não acho que tudo que aconteceu no chavismo é ruim.
Yan Boechat – A Venezuela é um país muito atípico na América do Sul. É um país mais caribenho de alma e tem uma economia que é muito própria. É o único país verdadeiramente rentista da América do Sul. Mas a gente vai sentir um impacto aqui se a coisa degringolar de verdade lá. Eu acho que você vai ter um fluxo migratório bastante importante. Já teve 30 mil venezuelanos. Você vai em Boa Vista e está cheio de venezuelano morando nas ruas, em uma situação realmente complicada. Essa é uma consequência importante que os países da região precisam olhar com carinho.