Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como reforçar os ecossistemas de informação?

Quando o intelectual Umberto Eco morreu há três anos, o mundo não conhecia expressões como pós-verdade e fake news, embora essas palavras ainda não tivessem sido formuladas já se anunciavam como práticas nas redes interconectadas. Talvez por isso em uma das suas últimas entrevistas concedida ao jornal El País em 2015, Eco dizia que a função do jornalismo no futuro seria dizer o que era ou não verdade na internet.

Umberto Eco (1932-2016) foi escritor, filósofo, linguista e bibliófilo italiano com obras reconhecidas internacionalmente. (Foto: Bogaerts, Rob/Anefo)

“O jornalismo poderia ter outra função. (…) Um jornalismo que me diga: “Olha o que tem na internet, olha que coisas falsas estão dizendo, reaja a isso, eu te mostro. (…) Teria que se fazer um jornal que não fosse apenas à crítica da realidade cotidiana, mas também a crítica da realidade virtual. Esse é um futuro possível para um bom jornalismo.”

Lembro da entrevista do escritor italiano ao me deparar com a edição impressa da Revista Época (23.04) que traz como matéria de capa a reportagem de Helena Borges: “Lorotalândia como operam dez dos maiores sites de notícias falsas no país”. Com base em dados da academia — do Grupo de Pesquisas Públicas para o Acesso à Informação da USP e do Laboratório de Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espirito Santo — a repórter escrutinou os maiores sites de notícias falsas do país.

Uma reportagem de campo, em destinos como Criciúma em Santa Catarina ou na Avenida Interlagos em São Paulo, identificou as sedes de sites que faturam alto para difundir informações falsas como a de que o Presidente da Câmara Rodrigo Maia e o Presidente Michel Temer tentavam desviar dinheiro para financiar terroristas palestinos. As produções do site Gospel Prime são financiadas, em grande parte, conforme denúncia da matéria, por deputados da bancada evangélica.

Helena Borges ouve as grandes corporações da internet como o google e facebook, cobrando responsabilidades pela difusão de informações falsas , questiona os políticos que compartilham as fake news e descreve os personagens obscuros que trabalham na produção das fraudes. Faz uma reportagem relevante e com possibilidade de impactar a realidade. Uma demonstração de que o combate às fake News passa, principalmente, pelo bom jornalismo. As diferentes agências de fact checking tem contribuído para desmascarar as  mentiras, mas falta-lhes a iniciativa de contar boas histórias por detrás dos dados, o que a reportagem de Helena Borges consegue fazer sinalizando um caminho.

A pesquisadora Claire Wardle dimensionou os novos ecossistemas da desinformação em entrevista publicada neste observatório, lembrando que o combate às notícias fraudulentas deve ser um preocupação diária como varrer as ruas. O ponto de convergência entre a última entrevista de Umberto Eco , a teoria de Claire e a reportagem da Época é a necessidade de fortalecer os ecossistemas de informação, como resistência à difusão irresponsável de fraudes disfarçadas de notícias nas redes. Algo que passa por tirar as máscaras dos sites de falso jornalismo, bem como das pessoas que se servem deles para fins políticos.

Esse trabalho deve ser feito, prioritariamente, através das boas práticas de jornalismo- transparência, pluralidade, autonomia em relação às forças econômicas e políticas. Mas quem paga a conta? Produzir informação de qualidade custa dinheiro. Na Folha de Domingo, o cronista Antônio Prata colocou o dedo na ferida. No artigo “Pague pela notícia, amigo”.

“Acho curioso. De onde veio essa ideia de que o jornalismo deve (e pode) ser de graça? (…) As pessoas acham justo pagar pelos rabanetes, pelos show do Radiohead, pela assinatura da Netflix, mas não pelo jornalismo esta instituição fundamental para o bom andamento da democracia. (Se você não gosta da Folha, e, pela esquerda ou pela direita, acha que ela não contribuiu para o bom andamento da democracia, assina a Carta Capital, a Exame, o Nexo Jornal, o Valor, a Piauí. E porque se restringir ao Brasil? Assinar The Economist, New York Times, Wall Street Journal, The Guardian, El País ou a NPR, rádio pública americana, é uma boa maneira de lugar pelo mundo em que você deseja viver).”

Todos os exemplos sugeridos por Prata são veículos da chamada grande imprensa, cercada por uma aura de desconfiança entre setores representativos da sociedade, sobretudo à esquerda. Mas a história não é estática e os últimos acontecimentos — e erros — podem indicar o investimento em uma cobertura mais crítica e plural por parte dos veículos tradicionais.Contribui para isso também o reforço de iniciativas digitais que ampliam as vozes da cobertura e da crítica.

Os desafios para o jornalismo brasileiro neste momento não são poucos. Num artigo na edição de abril da revista piauí– O Brasil e a recessão democrática-, o sociólogo Celso Rocha de Barros demonstra como a direita representada pelo grupo que está no poder ligou ou desligou as instituições conforme os seus interesses, com a leniência de muitos setores da imprensa.

“Na verdade, o Brasil teve outra constituição entre 2015-2016, e ela foi revogada após o impeachment. Em 2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e encerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido nomear ministros para lhes dar foro privilegiado; em 2017 deixou de ser. Em 2016, os juízes eram vistos como salvadores da pátria, em 2017 viraram os caras que ganharam auxílio-moradia-picareta. Em 2015, o sujeito que sugerisse interromper a guerra do impecheament em nome da estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017 tornou-se adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo. Em 2015, presidentes caíram por pedaladas fiscais; em 2017 não caíram nem se fossem gravados na madrugada conspirando com criminosos para comprar o silêncio de Eduardo Cunha ou do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a acusação de que Dilma teria tentado influenciar a decisão do ministro Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em 2017, Temer jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal Federal que o julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das acusações da Procuradoria Geral da República contra ele, Temer, ao congresso. Em 2015, Gilmar teria cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017, não cassou.”

O dinheiro hoje mais rareado na mídia tradicional aparece farto nas fábricas de fake news. E são os mesmos atores que “ligaram ou desligaram” as instituições de acordo com o seus interesses quem, conforme demonstra a reportagem da Época, ajudam a sustentar esse modelo. Para se contrapor aos ecossistemas de desinformação, o jornalismo brasileiro — seja da grande imprensa ou dos novos veículos digitais — terá que equilibrar seus pesos e medidas e buscar antes desvelar as mentiras do que ser portadora das grandes verdades. O jogo será pesado e a democracia não pode sair perdendo.

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Pedro Varoni é editor do Observatório da Imprensa.