A distopia orwelliana (“1984”) retratou com colossal senso de realidade o que sobrevém no tempo presente, especialmente no que tange ao protofascismo bolsonarista. Na ficção distópica, há um Ministério da Verdade que só relata e/ou publiciza mentiras, enquanto a população ignara e periférica se distrai com a possibilidade de enriquecer na loteria. O Brasil governado por Bolsonaro e sua malta caquistocrática aparelharam os ministérios de tal forma nesses dois anos e meio, que fica extremamente difícil acreditar em mudanças políticas qualificadas, pois as mesmas não têm qualquer aderência à res publica. A reforma administrativa (PEC 32/20) em discussão neste cenário tem por objetivo acabar com o serviço público e privilegiar o arco clientelístico bolsonarista em cargos de confiança.
Bolsonaro et caterva de forma deliberada vêm destruindo importantes e necessárias políticas sociais e ambientais, assim como desmantelando setores estratégicos do país (energia, infraestrutura, correios e bancos estatais). Não seria diferente com a saúde pública, um setor já castigado com o teto dos gastos (EC 95/16) imposto pelo golpista Michel Temer.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 instalada pelo Senado em 27 de abril de 2021, nessa direção, veio para apurar as omissões do governo federal, assim como eventuais desvios de recursos federais para o enfrentamento da pandemia que já matou quase 500 mil brasileiros/as. Na sessão de instalação da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM) foi eleito presidente e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da Comissão. Renan Calheiros (MDB-AL) foi indicado por Aziz para coordenar a relatoria dos trabalhos. Passados mais de 40 dias, a CPI já ouviu ex-ministros da saúde de Bolsonaro, com especial destaque para o general Eduardo Pazuello, que por meio de um habeas corpus procurou se defender a todo o custo de sua inepta e criminosa gestão contra a pandemia. Mentiroso contumaz (modus operandi do bolsonarismo), Pazuello tentou reverter o que os fatos por si só já denotavam, ou seja, de que o governo federal foi omisso desde o início da pandemia, apostando de forma anticientífica numa imunidade de rebanho sem vacinação em massa (aliás, recusando imunizantes ofertados por empresas farmacêuticas), que levou milhares de brasileiros a óbito. E o que é muito mais grave: o estado do Amazonas acabou por se tornar o local dessa experiência de imunidade de rebanho, onde houve inúmeras mortes por falta de oxigênio, além da indicação e aplicação do Kit covid pelo Ministério da Saúde que, como já se sabe, não tem qualquer eficácia contra o Sars-CoV-2. São fatos. Aliás, o senador Randolfe Rodrigues comentou recentemente na revista Carta Capital de que a CPI da Covid-19 “não persegue indivíduos, mas os fatos”.
Ainda que saibamos dos limites de uma CPI e de seus desdobramentos, que podem, inclusive, levar ao impeachment do capitão reformado do exército por crime de responsabilidade ou por crime de lesa-humanidade — algo difícil de ser levado a cabo por Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados depois do ‘Bolsolão’, um orçamento secreto de R$ 3 bilhões para compra de deputados —, a mesma tem uma importância histórica, pois deixa evidenciada e documentada de forma cronológica todas as etapas das omissões, deturpações, desinformações e atentados criminosos contra a vida humana por parte do governo federal.
Ao se eximir da tarefa precípua de coordenar em nível nacional o combate à pandemia, o bolsonarismo se ocupou com todo empenho e energia em desqualificar a ciência e protocolos sanitários, colapsando todo o sistema de saúde do país. Mas, como a mídia hegemônica, sobretudo os telejornais, vem noticiando a CPI da Covid-19? Importante destacar antes de tudo que, no dia 29 de maio, uma grande manifestação em todo o país contra Bolsonaro, reivindicando mais vacinas e o impeachment do capitão-cloroquina, recebeu atenção tímida dos jornalões (Estadão, Folha de S.Paulo, O Globo), assim como dos telejornais, como se as reivindicações populares estivessem descoladas daquilo que a CPI da Covid-19 instalada pelo Senado federal já evidenciou. A Folha de S.Paulo, por exemplo, chamou a atenção inúmeras vezes para a ‘aglomeração’ dos/as manifestantes no dia 29 de maio. Ora, por que parte da população brasileira teve de ir para as ruas mesmo numa situação pandêmica? Porque o bolsonarismo e Bolsonaro são tão letais quanto o vírus! Todavia, no dia 31 de maio, o Jornal Nacional das Organizações Globo desmentiu Bolsonaro quando o mesmo se referiu às manifestações contra ele em todas as capitais do país como meia dúzia de maconheiros/as em busca de alguma erva para se divertir (talvez tenha vindo daí a inspiração ignominiosa do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub). Por seu turno, o âncora do telejornal global foi explícito: “Não é verdade. Houve milhares de manifestantes por todo o país!”. Entretanto, é bom que se diga que a família Marinho não discorda da política econômica de Guedes, como se a pauta econômica estivesse dissociada de outros setores da vida pública, especialmente a saúde coletiva.
É perceptível que a cobertura da CPI da Covid-19 pelas Organizações Globo em seus telejornais (tevê aberta e por assinatura) é muito mais generosa do que de outros grupos empresariais jornalísticos, embora a empresa da família Saad (Rede Bandeirantes) tenha se afastado de Bolsonaro desde o ano passado, quando reestruturou o seu cast editorial com jornalistas mais progressistas, afastando repórteres e âncoras simpatizantes do bolsonarismo. No quesito bolsonarismo-raiz, SBT, Rede TV e Rede Record seguem firmes com o capitão-cloroquina, dedicando em seus telejornais um espaço protocolar para as discussões no Senado Federal. Mas é em nível local (Santa Catarina) que a desqualificação da CPI da Covid-19 pelo Grupo ND (Notícias do Dia) ocorre, diuturnamente, em seu telejornal noturno. Um articulista do ND esbraveja todas as noites de que os “senadores querem aparecer”. Inverte a situação de tal forma que os/as depoentes que faltam com a verdade acabam se tornando vítimas da crueldade mal-intencionada dos senadores da oposição. E quando pode, também ataca o Judiciário. É uma das táticas bolsonaristas: promover a celeuma entre os Três Poderes e ignorar, olimpicamente, preceitos constitucionais.
Como já discutimos em outras ocasiões, o bom jornalismo, para ter credibilidade, necessita ser imparcial e/ou buscar um equilíbrio entre as suas decisões/escolhas editoriais. Contudo, a produção midiática hegemônica incorre em angulagens tendenciosas ao sabor de interesses empresariais ou político-partidários. O que poderia ser uma fonte legítima para a compreensão do tempo presente transforma-se numa encenação cuja recepção por audiência a todo custo acaba sendo pouco rigorosa no que tange à profundez dos fenômenos sociais. Cabe à pesquisa atenta desvelar discursos cínicos e infundados, que leve em conta as vozes que foram esmaecidas por meio de determinadas técnicas jornalísticas que fortalecem a história dos opressores sobre os oprimidos.
É no presente que se pode reivindicar uma multiplicidade de interpretações da verdade, trazendo consequências epistemológicas importantes para o conhecimento que se deseja construir, como nos ensina o historiador Carlos Fico. O discurso midiático é necessário para o conhecimento das dinâmicas históricas do tempo presente, além de se problematizar memórias em disputa sobre a sociedade brasileira; é o que estamos vendo na cobertura da CPI da Covid-19, ainda que com limites. Uma consequência radical da CPI seria a punição exemplar dos envolvidos nesse infausto crime contra a saúde pública e, por efeito, contra a população mais vulnerável e pobre do Brasil. Um Tribunal Penal Internacional não deveria ser descartado.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Jéferson Silveira Dantas é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador associado do objETHOS.