Ganhando ou perdendo, o milionário Donald Trump já destruiu muitos mitos sobre as eleições norte-americanas. Mostrou também que muitas ideias populares sobre rituais democráticos estão perdendo o seu fascínio e aceitação acima de qualquer dúvida. Aqui no Brasil, o resultado do segundo turno nas eleições municipais também revelou que muitos comportamentos antes solenemente condenados, já não são mais tidos como pecados capitais em comportamento político individual.
As campanhas eleitorais e com elas, todos os rituais surgidos em torno do exercício do voto, estão sofrendo o impacto direto da massificação das estratégias publicitárias e do encastelamento da classe política numa redoma de privilégios e cumplicidades. A abstenção e o voto nulo começaram a abalar todo o clássico discurso sobre participação cidadã na definição dos rumos do Brasil. Por outro lado, os escândalos de corrupção envolvendo parlamentares e governantes minaram severamente a credibilidade dos responsáveis por um sistema político que até agora era apontado como a pedra angular da democracia.
Caleb Crain, escritor norte-americano, produziu um demolidor artigo na revista New Yorker onde resgata uma série de pesquisas de opinião para mostrar como o eleitor norte-americano é terrivelmente desinformado sobre o sistema político em seu próprio país. “Um terço dos norte-americanos acham que o slogan marxista ‘de cada um conforme a sua possibilidade e a cada um conforme a sua necessidade’, está na constituição dos EUA”, diz Crain que acrescenta em seu texto: “Quase a mesma proporção de eleitores não sabe quais são os três poderes que garantem a democracia no país”.
Esta ignorância sobre o que é e como funciona a democracia não surgiu agora com o fenômeno Trump. Ela já é antiga mas era minimizada pela imprensa e pelos políticos norte-americanos mas bastou o surgimento de um milionário arrogante para que as falácias sobre o sistema fossem expostas a luz do dia. O fenômeno Trump mostrou que é grande o número de norte-americanos desiludidos com a política e que descreem na forma como os dois maiores partidos se revezam no poder há mais de um século.
A desilusão dos eleitores
Aqui no Brasil, o fenômeno Lava Jato mirou no governo Lula mas acabou acertando na credibilidade pública dos poderes Legislativo e Executivo, com algumas escoriações no Judiciário. Ao mexer na abelheira da corrupção eleitoral para derrubar Dilma Rousseff e tentar impedir a candidatura presidencial de Lula em 2018, os responsáveis pela Lava Jato, com a colaboração da imprensa e da Polícia Federal, escancararam para o eleitor brasileiro o que rola nos bastidores da política e principalmente das eleições no país.
Daí não haver surpresa alguma pelo fato dos eleitores preferirem candidatos que se apresentaram como não políticos, ou simplesmente decidiram não votar em ninguém. Os porta-vozes do sistema tentam achar explicações convincentes para o óbvio mas só conseguem reforçar o fato de que não querem ou não conseguem ir mais fundo na identificação do crescente distanciamento entre o publico brasileiro e seus governantes.
A metralhadora giratória de Donald Trump agrada os eleitores que não sabem identificar os três poderes de seu país e torna evidente que a tão decantada democracia norte-americana é, em boa parte, um produto de marketing político. Se o voto não fosse obrigatório aqui no Brasil os números da desilusão e da desesperança seriam ainda mais impactantes.
Joshua Rothman, um colunista da revista The New Yorker, mostrou como a radicalização política gerada pelo fenômeno Trump envenenou a vida nas comunidades norte-americanas num fenômeno que ocorreu aqui também, especialmente depois da crise gerada em torno do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Rothman cita o livro da pesquisadora Nancy Rosenblum, autora do livro “Good Neighbors: The Democracy of Everyday Life in America” no qual ela afirma que estamos vivendo dois tipos diferentes e, às vezes antagônicos, de democracia: a política dos partidos e a política do dia a dia. Na primeira agimos como cidadãos e na segunda como vizinhos. O problema é que hoje começamos a nos comportar cada vez mais como vizinhos porque as opções políticas antagônicas se tornaram cada vez mais próximas do nosso dia a dia. Acabamos contagiados pela polarização entre os políticos, com a consequente redução da tolerância entre vizinhos e amigos.
O que se torna cada vez mais claro, e que tanto lá como aqui, não é a democracia que está em crise, mas o discurso criando em torno dela e os seus autoproclamados lideres e defensores. A divulgação dos negócios bilionários com dinheiro publico para fins pessoais e eleitorais aqui no Brasil bem como a publicação dos e-mails de Hillary Clinton mostraram como a classe governante nos dois países administra o Estado como um bem privado.
Mostrou também um crescente descrédito de uma parcela considerável de eleitores que já descreem também na capacidade do sistema se auto-depurar. Esta é uma possibilidade preocupante e que nos coloca diante de dois cenários possíveis: uma anarquia resultante da falência moral da classe dirigente e da inexperiência política dos cidadãos comuns; ou um vácuo político que abre caminho para um autoritarismo herdeiro de Hitler, Stálin e Pinochet.
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Carlos Castilho é jornalista e editor do site do Observatório da Imprensa