Sem carro ou espaçonave capaz de viajar no tempo, contando apenas com a idade que me permite chegar ao futuro, eis que me deparo de novo com o passado.
Como se o filme De volta para o futuro (Back to the Future) fosse real, neste momento, estou de novo no ano de 1964, porém alguns cenários foram alterados.
Em lugar da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no dia 19 de março, me encontro diante de uma manifestação, na mesma avenida Paulista, em São Paulo, com pessoas trajando roupas verde-amarelas, no dia 26 de maio de 2019: é a Marcha com Deus por Bolsonaro.
Presto atenção: em lugar de imagens sagradas de cantos gregorianos católicos e daquele cheiro de velas acesas por conservadores, são outras as rezas, ladainhas e cânticos. São orações, salmos e hinos evangélicos fundamentalistas. E Bíblias, muitas Bíblias fechadas, nem sempre lidas. Na essência, quase nada mudou, só o cenário. Como sempre, a religião domina o cortejo.
Façamos o transplante, back to 1964. Quem viu a trilogia nunca se esqueceu de Marty McFly e do seu amigo Doc, na cidade de Hill Valley. Dois caras boas praças, ligados em ciência e descobertas, em busca de aventuras.
Porém, como sempre, havia um vilão. Era Biff, Biff Tannen, um joão-ninguém, um desocupado, um paspalho ou bolha, se quiserem, mas com uma dose de safadeza e esperteza. E Biff se apropria do almanaque esportivo de McFly, editado no futuro, dez anos depois, com o resultado de todos os jogos e competições dos últimos anos. Era a chave da fortuna.
Quando McFly e Doc regressam ao tempo presente, sua cidade, Hill Valley não é mais a mesma. É um pouco Rio de Janeiro com bandidos e tiros pelas ruas, ladrões que atacam moradores, trancafiados em condomínios fechados e casas protegidas com grades nas portas e janelas. Moradias incendiadas, bordéis barulhentos, cassinos e casas de jogos repletos, Hill Valley mudou; virou Hell´s Valley, ou Vale do Inferno.
O que teria acontecido?, perguntam-se McFly e Doc. Simples: o vilão Biff tinha se enriquecido com apostas, utilizando o Almanaque, e usara seu dinheiro para transformar a cidade num centro do banditismo. Agora, era ele o prefeito e, com sua falta de formação, de preparo e de visão, levou a cidade ao caos, miséria e destruição.
Não se assustem. O Brasil, sabe-se lá como, entrou inteiro na máquina do tempo e desembocou no dia 19 de março de 1964 (embora na folhinha esteja marcado 26 de maio), com bandeiras, cartazes e vivas em homenagem a Biff Tannen, o presidente.
O ar cheira a enxofre, mas eles se dizem de Deus, e o que querem?
De rifles nas mãos, revólveres na cintura, escandeiam “viva a morte” em busca de índios, gente sem terra ou sem teto, comunistas, esquerdistas, petistas, jornalistas…
Cartazes mostram enormes serras para abater o verde da Amazônia e transformá-la em campos dourados de soja; tratores ocupam a avenida louvando os lucros do agronegócio com seus pesticidas que destroem e acabam com as abelhas, envenenam os próprios lavradores e quem se alimenta com suas colheitas de verduras, frutas e legumes.
Ao passarem diante de um teatro, onde o grupo mineiro Corpo exibe um espetáculo de balé, entram com os tratores, destroem cartazes, cenários e perseguem dançarinos aos gritos de “pecadores e imorais para o inferno”.
Um grupo mais exaltado, ao chegar diante do MASP , o museu de arte moderna, decide subir e entrar, rasgando e destruindo quadros de grandes pintores a pretexto de serem imorais e ofensivos a Deus. Tomados pelo o que dizem ser ira santa, acabam arrancando todos os quadros e fazendo uma enorme fogueira no vão do prédio projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi.
A fogueira atiçou o restante dos manifestantes excitados, que, aos gritos de “abaixo Sodoma e Gomorra”, atacaram as livrarias Martins Fontes e Cultura, queimando sem mesmo selecionar tudo quanto era impresso. Pastores, também embalados pela euforia contra o demônio, berravam “só a Bíblia merece ser lida”.
Num palanque improvisado, o filho de Biff Tannen, o exaltado Griff Tannen, às voltas com um processo na polícia, explicava aos verde-amarelos: para fechar o Supremo Tribunal Federal, basta um cabo e um soldado, e isto aqui, e mostrava um rifle novo, recém-liberado para venda depois do Decreto liberalizando armas para todos. Em Brasília, outro grupo sem controle estava atacando, nesse mesmo instante, o prédio do Senado e da Câmara.
O golpe já era favas contadas. A família Tannen, dos arruaceiros Biff e Griff, só esperava chegarem as tropas e tanques do Exército.
Mas não vieram.
Enquanto a cidade vivia um clima de inquisição e ódio, McFly e Doc agiram depressa e fizeram voltar a máquina do tempo, queimando o Almanaque e reduzindo a nada as riquezas acumuladas nas apostas. Biff Tannen e seu filho (ou três filhos?) acabaram sendo soterrados pelo estrume de um caminhão que por ali passava. Nessa altura, devem estar se esfregando embaixo do chuveiro.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.