De todos meus comentários foi esse que me deu mais trabalho e exigiu mais pesquisa. Tão logo li, no portal de notícias Metrópoles, a hoje tão comentada história da compra de milhares de latas de leite condensado marca Moça, imaginei a deliciosa e doce matéria saindo do meu computador.
Ah, ah, quando se fala em leite, antes mesmo de se pensar num pingado, logo se imagina o bezerro extraindo pela sucção o seu precioso alimento das tetas da vaca. Esse ato é descrito pelo verbo mamar. O bebê recém-nascido também mama com a mesma força no seio de sua mãe. Mas o seio pode ser substituído por uma mamadeira.
Mamar e mamadeira, o verbo e o substantivo, voltaram a ser atuais no governo Bolsonaro. Todos querem mamar, ele e seus filhos inclusive. E o leite condensado — já tão apreciado pelo presidente populista na sua receita bem popular e nada sofisticada de ser saboreado com um naco de pão ou de ficar no meio de um pãozinho francês, seria delicioso como tema de denúncia num comentário político. De dar água na boca, para quem escreve e para quem lê.
Todos querendo mamar, tanto deputados como senadores, a ponto de se esquecerem do impeachment.
Chamou-me a atenção o fato do presidente justificar o envio de tanto leite condensado para as tropas militares, onde também milhares de jovens estão cumprindo seu serviço militar. Eu pessoalmente não me lembrava de um tratamento tão, digamos maternal, aos soldados, na hora do rancho ou do café no quartel, onde prestei meu serviço militar ou, na linguagem popular, onde servi o Exército.
Foi no 6º Grupamento de Costa Motorizado, numa antiga cavalariça no centro da cidade de Santos, transformada em quartel, depois transferido para Itaipu. Conto isso com desnecessários pormenores, porque nesse mesmo quartel, no ano seguinte, serviu o Pelé, bem no começo de sua carreira no Santos F.C. Ali, como se diz, cumpri meu tempo de serviço, um ano.
Tão logo souberam do meu diploma no curso clássico, no colégio público Canadá, fui dispensado das ordens unidas e passei a trabalhar como escriturário com o Primeiro-Sargento José Bahia, na atualização das fichários de soldados e conscritos, mais as escalas de serviços. Bahia tinha um perfil diferente do militar: me levava consigo em lançamentos de livros e conferências literárias, me criando esse hábito.
Esse desvio era necessário contar, porque no meu comentário eu iria falar de Intendência nos quartéis, o serviço destinado a cuidar do abastecimento de todos os setores militares, inclusive o da alimentação. Não sei se isso inclui a goma de mascar ou chicletes, mas por certo o aprovisionamento de leite.
Depois de Bolsonaro ter falado em leite condensado para a tropa militar, fiz algumas buscas e fiquei sabendo ter havido distribuição de leite condensado nos Estados Unidos, logo depois de criado pela Nestlé, para os soldados nortistas federais, sob o governo do presidente Abraham Lincoln, durante a guerra contra os sulistas norte-americanos, desejosos de se separar da União após a abolição da escravatura. Terminada a guerra, o leite condensado se tornou popular.
Como não era tão absurda a desculpa de se distribuir leite condensado nos quartéis, a questão exigia esclarecer se os milhões gastos se referiam a despesas pessoais do presidente. Caso fossem despesas pessoais, não se poderia tolerar porque todas as despesas de alimentação nos quartéis são debitadas na Intendência. Ora, ao fazer uma rápida pesquisa, percebi que o absurdo total de compra de leite condensado não se referia às despesas do Palácio do Planalto, mas ao gasto total do Serviço de Intendência, publicado pelo Ministério da Economia.
Uma conclusão se impõe: por que tanta repercussão na divulgação destes gastos? Fala-se num aumento de 20% sobre o ano retrasado, e isso em si só já é exagerado. Porém, não se pode ignorar a perda gradativa de credibilidade sofrida nestes últimos meses pelo presidente Bolsonaro, favorecendo a transformação de um balanço geral de despesas como sendo suas próprias despesas e de sua desprestigiada família. A criação de um escândalo, que se agravou com a retirada do edital desse balanço de despesas, mais a não aceitação das explicações dadas por Bolsonaro, são a consequência da descrença criada à volta do presidente, com suas constantes mentiras. Tudo tem um limite e Bolsonaro talvez tenha chegado ao seu limite final de mentiroso do Planalto.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.