Venezuela, 30 de abril de 2019. Na véspera do emblemático feriado do Dia do Trabalhador, logo nos primeiros minutos da manhã, Juan Guaidó, autoproclamado presidente daquele país, anunciava contar com apoio suficiente entre a população civil e as Forças Armadas para depor Nicolás Maduro e liderar o que ele designara de retomada da democracia na Venezuela.
Enquanto isso, canais de televisão de todo o planeta se preparavam para cobrir a queda de Maduro e, consequentemente, o fim do chavismo. Para tanto, era preciso transformar a disputa pelo poder na Venezuela em uma espécie de épico, uma batalha do bem contra o mal. O script já estava devidamente planejado. Nos braços do povo e com o suporte dos militares desertores e patriotas, Guaidó chegaria ao Palácio de Miraflores e retiraria do governo o ditador Nicolás Maduro. Como num passe de mágica, todos os problemas venezuelanos seriam resolvidos.
Não por acaso, naquela manhã de abril, a GloboNews abdicou de sua programação normal, convocou seus principais comentaristas de geopolítica e convidou professores de Relações Internacionais com o objetivo de realizar uma gigantesca e histórica cobertura sobre o tão esperado triunfo de Guaidó. Nada poderia dar errado nesse grande evento midiático. Chegou-se, inclusive, a noticiar (falsamente) que um avião aguardava Maduro com destino ao exílio em Cuba. Ao contrário do ocorrido em 2002 contra Chávez, o golpe, enfim, seria televisionado.
No entanto, a realidade é muito mais complexa e controversa do que as narrativas simplórias e maniqueístas dos grandes grupos de comunicação. Lembrando uma clássica frase de Mané Garrincha, “faltou combinar com os russos”; ou, melhor dizendo, “com as Forças Armadas venezuelanas”. Pouco tempo após as declarações de Guaidó, os principais nomes da cúpula militar vieram a público reforçar o apoio a Maduro. Um balde de água fria nas pretensões golpistas de Guaidó e seus aliados.
Após o anúncio de apoio a Maduro feito por membros das Forças Armadas, na (decepcionada) mídia brasileira surgiram várias declarações negativas em relação aos militares venezuelanos, acusando-os de receber uma série de privilégios do governo Maduro. Segundo o comentarista de América Latina da GloboNews, Ariel Palácios, desde o fim das últimas ditaduras latino-americanas, nos anos 1980, nunca se viu tantos militares em altos cargos do governo como se vê no regime de Maduro. Não obstante, veículos como o site UOL e o jornal O Estado de Minas deram grande destaque para uma declaração do Ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Brasil, general Augusto Heleno, que acusava o presidente venezuelano de empregar os generais do Exército do país no tráfico de drogas. Desse modo, subitamente, os militares venezuelanos passaram de paladinos da “transição democrática” (eufemismo para “golpe de Estado”) a cúmplices da ditadura de Maduro.
Frustrada a alternativa de tomar o poder pela via militar, restava a Guaidó o suposto apoio popular. Mais uma vez, a mídia entrou em cena, através de suas maiores especialidades: manipular imagens, ocultar fatos e fragmentar a realidade. Se as adesões às mobilizações convocadas por Guaidó não atingiram as cifras esperadas, enquadra-se o menor espaço possível para gerar a impressão de ter um número maior de pessoas; se o apoio popular ao governo Maduro é grande, deve ser escamoteado do público; e, se há violência de ambas as partes, somente as ações truculentas dos apoiadores de Maduro devem ser exibidas na tela da televisão. Dois pesos, duas medidas.
Todavia, nem a suposta mobilização popular foi suficiente para derrubar o governo Maduro. Com a tentativa de golpe devidamente frustrada, coube à mídia lamentar sobre o ocorrido e buscar algumas explicações. Conforme noticiou a revista Época: “Na disputa de forças, a corda arrebentou para o lado de Guaidó”. Nesse sentido, muitos analistas ouvidos pela imprensa hegemônica questionaram a capacidade de Guaidó de estar à frente da “transição democrática” na Venezuela e citaram políticos como Antonio Ledezma, Leopoldo López ou Henrique Capriles como nomes mais habilitados para liderar o processo de deposição de Maduro.
Evidentemente, os governos chavistas, como quaisquer outros, têm os seus equívocos, como, por exemplo, não promover uma maior diversificação da economia venezuelana, altamente dependente das exportações de petróleo. Consequentemente, o rebaixamento do preço dessa commodity no mercado internacional inevitavelmente gera prejuízos para o nosso vizinho boreal.
Por outro lado, é demasiadamente ingênuo analisar a atual crise venezuelana sem levar em consideração a interferência estadunidense. Conforme bem explicou o jornalista Amauri Chamorro, em entrevista à Rádio Brasil Atual, os Estados Unidos proibiram que toda instituição financeira que tenha sede em seu território faça qualquer tipo de transação com o Estado, com alguma pessoa ou com uma empresa venezuelana. Se ela fizer, terá os bens bloqueados nos Estados Unidos. Então, bancos de todo o planeta não fazem mais transação com venezuelanos.
Não obstante, os embargos estadunidenses não se limitam aos bancos e chegam até às transportadoras responsáveis pelo alimento destinado à Venezuela. Nesse sentido, os Estados Unidos têm um monitoramento de todos os barcos que atracam nos portos venezuelanos.
Se atracarem em portos venezuelanos, essas embarcações estarão proibidas de chegar à Europa. Consequentemente, as companhias de transporte naval não querem mais levar produtos à Venezuela, porque serão proibidas de atracarem nos Estados Unidos e no Velho Continente. Então, isso origina um processo de desabastecimento.
Portanto, o bloqueio econômico imposto por Washington é um dos principais motivos da crise econômica e política da Venezuela, sendo responsável, em grande medida, pelo problema de abastecimento e da hiperinflação na economia local (causada, em parte, pelo desequilíbrio entre oferta e demanda). Se a imprensa brasileira cedesse o mínimo espaço para a pluralidade de informações, para o contraditório, questões como as colocadas por Amauri Chamorro seriam de conhecimento do grande público.
Por outro lado, também não há como entender a atual situação venezuelana sem mencionar o contexto geopolítico pós-crise financeira de 2007/2008, em que as nações imperialistas, principalmente os Estados Unidos, têm patrocinado golpes de Estado mundo afora. Enquanto no Brasil, para que as nossas riquezas naturais fossem entregues aos grandes capitalistas internacionais, bastou a grande mídia convocar a classe média para vestir verde e amarelo, bater panela e dançar em torno do pato da Fiesp; na Venezuela, a realidade tem se mostrado muito mais complexa.
É fato que, conforme apontado anteriormente, o governo Maduro está longe do ideal; porém, colocar no poder um simples fantoche de Washington (como é Juan Guaidó) não representará, em hipótese alguma, uma solução plausível para a crise venezuelana. Pelo contrário, sua política entreguista agravaria ainda mais a situação da população daquele país. Portanto, denunciar o golpe que está em marcha na nação de Simón Bolívar e toda a campanha de manipulação midiática que ele envolve não é uma questão meramente ideológica, mas trata-se de defender a mínima soberania dos povos sul-americanos contra a política de rapina imposta pelos países desenvolvidos.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.