Houve dois discursos do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Mundial da ONU – um para consumo interno no Brasil, que deve ter entusiasmado seus fiéis devotos, por verem seu mito ofendendo países e se fazendo de machão; outro para os representantes de 192 países reunidos em Nova York, que devem ter se surpreendido com seu estilo grosso, sua arrogância e petulância com seu vergonhoso discurso francamente de extrema-direita.
Tanto num como no outro, houve muitas mentiras, facilmente desmascaradas com fotos, como no caso dos incêndios na Amazônia. Houve provocações, ofensas, ameaças veladas; de tudo somado surge um balanço negativo para o Brasil. Sua maneira surpreendeu e retira do Brasil uma respeitabilidade conquistada e mantida desde a criação da ONU.
E há esperanças?
Há esperanças para nosso futuro próximo? Não, não há, nenhuma. A maioria dos brasileiros continuará acreditando ainda mais em Bolsonaro que nos seus críticos. Por falta de cultura e por não ter uma ideia do que representa a ONU no cenário internacional. Agora, o mito, no seu retorno ao Brasil, será considerado machão, embora na verdade o país possa ser colocado num isolamento internacional.
Mas chegou também a hora de deixar de falar em Bozo, de tratar o presidente como idiota. Não é por aí que se conseguirá reverter a situação política no Brasil. Ele até pode ser, ou fazer como se fosse, mas, ali, na tribuna da ONU, lendo seu discurso, ele se comportou como um líder nacionalista de extrema-direita, um Hitler tupiniquim.
Ele não treme quando mente e nem quando cita um versículo bíblico, “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, quando deveria ser “e conhecereis a mentira e a mentira vos enganará”.
Não se deve subestimar os inimigos, mas, infelizmente, é isso o que vem fazendo a esquerda, dividida e petrificada em torno de Lula. Nossa esquerda não pode existir sem o culto do personalismo? Qual foi o resultado? O povo brasileiro, que não evoluiu do populismo, foi induzido a crer agora com fé religiosa num mito antipetista.
Existe no Brasil um partido socialista com programa bem definido, com as bases principais popularizadas e bem explicadas para proteger o povo do surgimento de mitos? Não, e o resultado é um governo capaz de destruir, em quatro anos, tudo quanto já foi construído no passado.
Em todos esses anos de avanço social, a esquerda não soube se unir para evitar o estrago atual. E houve mesmo um momento em que a esquerda poderia ter eleito quem, além de prosseguir com um programa social, incluía um programa de respeito ao meio ambiente, à ecologia contra o aquecimento do planeta e à proteção da Amazônia.
Mentiras por atacado
Há alguma esperança à vista? Não, nenhuma.
Enquanto isso, Bolsonaro continuará tentando mudar nossa história, negando ter havido um golpe e contando a lorota de que o Brasil esteve à beira do socialismo.
Nosso fuehrer não tem vergonha de falar em desregulamentação no trabalho, mesmo porque
os pobres não têm ideia do que isso significa. E bate bem na tecla que lhe garantiu a vitória – “os valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.
Mais além, pronuncia igualmente sua homofobia, sempre se escorando nos evangélicos. Bolsonaro, o líder nacionalista que defende nossa soberania, não diz ser o evangelismo um produto de importação americana, made in USA, responsável pela destruição gradativa de nossa cultura.
O presidente aproveitou a oportunidade de ter uma tribuna mundial na ONU para atacar Cuba, Venezuela e proferir ameaças ao Foro de São Paulo, uma provocação que foi um insulto aos esforços de Oswaldo Aranha no passado.
O teto não lhe caiu na cabeça quando, com o maior cinismo, proferiu as seguintes mentiras nuas e cruas: “meu governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável…nossa Amazônia… permanece praticamente intocada. Prova de que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente.”
Soberania brasileira e indígenas
Menosprezando a inteligência dos presentes, Bolsonaro afirma que os incêndios na Amazônia são invenção da mídia, pretexto para declarar a defesa da soberania brasileira, para logo mais adiante elogiar o presidente Trump, ao qual ninguém ignora sua sujeição.
Ao enumerar os 14% de terra indígena protegida, Bolsonaro se esquece de mencionar serem alvo de ataques constantes e argumenta em favor da assimilação dos indígenas, como se, com isso, passassem a ter maiores direitos e proteção, quando ocorre justamente o contrário.
Esquece de contar, como diz fora da ONU, que não deixará um centímetro quadrado para os índios, e aproveita para criticar o líder indígena Raoni, indicado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz.
Deixa veladamente uma ameaça aos índios das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol, que vivem em terras ricas em ouro, diamante, urânio, nióbio e outros minérios.
Para justificar seu desejo de utilizar as terras indígenas para a agricultura intensiva, além da exploração de seus minérios, Bolsonaro afirma que apenas 8% das terras brasileiras são utilizadas, enquanto a França e Alemanha utilizam 50% de suas terras.
Não faltou um elogio ao ministro Sergio Moro, embora dentro do Brasil circulem notícias de sua queda próxima.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.