Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mandetta, o novo herói nacional?

(Foto: Carolina Antunes/PR – WikiMidia)

É fato que, neste momento conturbado de pandemia do coronavírus, a grande imprensa, ao levar informações importantes para a população, tem desempenhado um papel de extrema relevância. No entanto, isso não significa nos isentarmos de tecer críticas pontuais a certas características das coberturas midiáticas que, ao simplificar demasiadamente uma determinada questão, mais obscurecem do que propriamente explicam a realidade.

Nas narrativas presentes nos meios de comunicação de massa, sobretudo nas coberturas televisivas, a realidade é espetacularizada. Para prender a atenção do público, não basta descrever um fato. É preciso transformá-lo em uma espécie de épico, com vilões, heróis, personalizações e maniqueísmos, despertando nas pessoas efeitos emocionais como simpatia, compaixão e angústia.

Desse modo, o público sente medo a cada notícia sobre o vertiginoso avanço da pandemia do coronavírus, fica esperançoso com a possibilidade de novos tratamentos e se compadece com os dramas vividos por quem contraiu a covid-19. Nada mais normal e compreensível. Afinal de contas, a alteridade é um sentimento bastante cultivado em tempos como o atual, nos faz lembrar de nossa humanidade.

Porém, ao transformar a realidade em um épico, as narrativas midiáticas também podem levar muitos indivíduos a posicionamentos equivocados. No caso da maniqueísta cobertura sobre a atuação do governo federal diante da pandemia do coronavírus, dois personagens têm se destacado: o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Em qualquer circunstância, Bolsonaro, exceto para os seus fiéis seguidores, não precisa se esforçar muito para receber o papel de antagonista. Já a representação midiática sobre Mandetta é mais complexa e controversa. Cabe uma reflexão mais aprofundada para não nos precipitarmos e cairmos nas inúmeras armadilhas discursivas que existem por aí.

Em um governo cujos membros parecem ter saído diretamente de grupos de WhatsApp, Luiz Henrique Mandetta tem se destacado por apresentar uma postura minimamente esperada para um homem público. Não por acaso, articulistas da imprensa hegemônica, astutos como de costume, rapidamente classificaram Mandetta como membro da “ala técnica” de ministros, em contraposição à chamada “ala ideológica” (como se fosse possível o integrante de um governo de extrema-direita não ser inerentemente “ideológico”).

Lembrando o velho Marx, devemos buscar a essência por trás da aparência. Mandetta não é o paladino da saúde pública, conforme querem nos fazer crer. Uma breve análise de seu histórico revela um político que se opôs ao programa Mais Médicos, votou a favor da PEC responsável por congelar gastos sociais por duas décadas, deu aval para o retorno do antigo modelo de hospitais psiquiátricos e, o que mais impressiona, foi eleito deputado federal com o apoio do poderoso lobby dos planos de saúde (que tem por objetivo, justamente, sucatear o sistema público de saúde em benefício da iniciativa privada).

No ano passado, em entrevista ao programa Roda Viva, Mandetta chegou a afirmar que o Congresso deveria discutir a privatização do SUS (assim como a cobrança de atendimentos) e declarou ser contrário à ideia de que empresas alimentícias devessem escrever nos rótulos toda a composição de um alimento.

Desfeita a imagem do “herói Mandetta”, também é importante elucidar a falsa dicotomia “Bolsonaro versus Mandetta”.

Só o fato de pertencer ao atual governo já comprova que o ministro da Saúde não é opositor de Jair Bolsonaro. Isso é bastante óbvio. No entanto, a divergência entre presidente e ministro da Saúde sobre a quarentena a ser adotada durante a pandemia do coronavírus trouxe a falsa impressão de que Mandetta seria “antibolsonaro”. Nada mais distante dos fatos.

Basta lembrarmos que, um dia após Bolsonaro fazer o famoso pronunciamento minimizando os efeitos da covid-19 (a “gripezinha”), o ministro da Saúde, em entrevista coletiva, se referiu ao coronavírus como “virose” (em vez de “pandemia”) e afirmou que a quarentena decretada pelos estados foi “precipitada”.

Mesmo sendo inverídica, a dicotomia “Bolsonaro versus Mandetta” provocou fortes reações em diferentes setores da sociedade. Nas redes sociais, o ministro da Saúde foi mais um dos alvos da fúria do exército bolsonarista, rotulado como “rato”, “oportunista” e “traidor”. Para a direita tradicional, Mandetta tem surgido como uma possível alternativa para a eleição presidencial de 2022 (uma pesquisa do Datafolha apontou que ele é aprovado por 76% da população brasileira).

Sob o argumento de que “o que Mandetta fez no passado não importa”, boa parte da esquerda brasileira teceu vários elogios ao ministro da Saúde do governo Bolsonaro, demonstrando completo desnorteamento político. Na segunda-feira (6 de abril), a falsa notícia divulgada por um articulista de O Globo sobre a demissão de Mandetta provocou um alvoroço em muitos esquerdistas, temerosos de que a queda do ministro da Saúde provocasse, automaticamente, o fim do isolamento social. Parecia que a chegada do apocalipse estava sendo anunciada. No Twitter, o deputado federal pelo Psol, Marcelo Freixo, foi um dos maiores entusiastas da campanha “Fica Mandetta”.

Nesse sentido, podemos afirmar que entrou em cena outra característica controversa das coberturas midiáticas: a personalização da notícia, que significa reduzir o cenário político à atuação de determinados indivíduos, não levando em consideração interesses econômicos e o próprio andamento das instituições.

A personalização da política levou à equivocada conclusão de que a quarentena adotada em boa parte do país se deve, exclusivamente, à figura de Luiz Henrique Mandetta. Porém, na terça-feira (7 de abril), o próprio ministro declarou: “O Ministério da Saúde nunca é quem adota o grau de rigidez. […] Não vai ser o Ministério que vai falar: fecha o bar, fecha o teatro, para ônibus, aumenta isso, não vai ao metrô”.

Assim como os bolsonaristas têm a constante necessidade de criar inimigos, boa parte da esquerda se apega facilmente a novos heróis. Basta criticar um ministro da Educação em discurso no parlamento, defender posturas identitárias ou simplesmente discordar de Bolsonaro em alguma questão, como no caso de Mandetta, para a (carente) esquerda brasileira já classificar um indivíduo como “progressista”.

Num país onde a discussão sobre isolamento social como estratégia para enfrentar a pandemia do coronavírus se transformou em uma questão de opinião, e não de argumentos técnicos e científicos, qualquer membro do governo que destoe do negacionismo bolsonarista é um potencial “salvador da pátria”. Lembrando Bertolt Brecht, “infeliz da nação que precisa de heróis”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático, ambos pela editora CRV.