Quanto irá custar às igrejas e grupos evangélicos, em termos de credibilidade, terem apoiado a eleição e sustentado até agora o governo de Jair Bolsonaro, embora seu programa eleitoral e suas decisões e indecisões como presidente nada tenham a ver com os princípios morais do cristianismo?
Podemos começar pela linguagem chula, sem educação, rude, um tanto grosseira, obscena e tantas vezes de baixo calão, inapropriada para quem ocupa o cargo de presidente de um país, até há pouco respeitado em todo o mundo. Imaginem o tosco Bolsonaro no púlpito de uma igreja, ao lado de uma Bíblia, ou num encontro internacional da ONU em Genebra, falando como se estivesse num boteco.
Mas até Mazzaropi seria respeitado se, em termos de governo, mostrasse inteligência e respeito ao povo, a todos os cidadãos, com suas diferenças de cor, gênero e de comportamento. Não é o caso. Bolsonaro é racista, desrespeita as mulheres como um machista já fora da moda, não considera os indígenas como seres humanos e não tem nenhum respeito pelos pobres, muito menos quando morre de Covid.
Não se pode esquecer que ele defendeu, em seu passado de deputado, a esterilização dos pobres como meio eficaz para combater a criminalidade e a miséria. Ou seja, em lugar de se resolver a questão social, se diminui a população pobre.
Como já se pode perceber, com ele “não tem essa de direitos humanos”. Ou como dizia, quando deputado federal, “o Brasil só vai melhorar quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro”. E completou: “Fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Não deixar ir para fora, não, matando. Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, em tudo quanto é guerra morrem inocentes”.
Essa mesma atração patológica pela morte ressurge quando começam a morrer brasileiros com a Covid-19 — “ninguém morre antes da hora!” Fazia questão de dizer ser um nostálgico da ditadura militar de 64, sempre apoiou a tortura, “bandido bom é bandido morto” e fez o elogio do torturador do DOI-Codi, Brilhante Ustra, condenado por crimes cometidos durante a ditadura.
Isso vale como introdução, pois essa linguagem de extrema-direita de Bolsonaro, responsável por começar a ser qualificado como fascista e logo depois como nazifascista, foi confirmada na prática ao tratar com desdém a crise sanitária do coronavírus, qualificando-a como gripezinha e chamando de maricas quem quisesse se vacinar.
Assessorado por um gabinete paralelo, tornou-se o único presidente em todo mundo a adotar e a fazer propaganda da cloroquina como remédio para o coronavírus, causando a demissão de ministros da Saúde sucessivos, até indicar um militar não qualificado para esse posto. O resultado dramático, de quase 550 mil mortes, prestes a ultrapassar o número de mortes nos EUA (onde o ex-presidente Donald Trump também minimizava a Covid-19), já lhe garantiu o uso do epíteto genocida.
A tudo isso, vem se juntar o escândalo do superfaturamento na compra da vacina indiana Covaxin e as denúncias da cunhada de Bolsonaro sobre a “rachadinha”. Sem esquecer a destruição da Amazônia, a liquidação das nossas empresas estatais e a liberalização do porte e compra de armas. No exterior, os jornais chegam a dar capa para as manifestações contra Bolsonaro. Geralmente, quando isso ocorre, quando começa a cheirar mal até no exterior, ou vai cair ou vai haver golpe.
E a responsabilidade dos evangélicos diante disso?
Não é preciso ser teólogo para ver a responsabilidade dos evangélicos, de maneira geral tanto as denominações tradicionais, como presbiterianos, metodistas, batistas, quanto as populares, como pentecostais e congregações cristãs, na eleição e no apoio ainda atual ao presidente Bolsonaro.
Como teria sido costurado esse acordo? Teriam sido as grandes empresas agropecuárias as articuladoras, em troca da liberação das áreas protegidas das florestas amazônicas para o plantio de cereais e criação de gado? A rapidez com que se iniciaram os desmates e os incêndios conduzem nessa direção.
Esse fiel apoio religioso a um presidente, cujo programa e declarações não correspondem ao credo evangélico, tem sido retribuído com distribuição de cargos de confiança e mesmo de ministérios aos evangélicos, possuidores de uma forte bancada na Câmara Federal. Mas essa participação inédita dos evangélicos no poder só continuará com a manutenção de Bolsonaro na presidência.
É importante assinalar que, nos últimos anos, as denominações evangélicas brasileiras não tradicionais souberam simplificar a mensagem cristã como compensatória da pobreza e miséria, transformando-a num tipo de populismo religioso. Nada a ver com a Teologia da Libertação dos católicos progressistas, pois os evangélicos não parecem interessados em qualquer tipo de reforma social, apenas na doutrina da salvação da alma, num quadro fundamentalista e conservador de um cristianismo de submissão.
Essa nova situação na estrutura política brasileira, onde um governo é sustentado por cerca de 30% de religiosos, nos remete ao ocorrido no começo do século passado na Alemanha, quando o governo nazista conseguiu ganhar o apoio dos luteranos e evangélicos e sua cumplicidade, inclusive na perseguição aos judeus.
Entretanto, a semelhança termina aí, porque a cultura teológica na Alemanha, onde ocorrera a Reforma, engendrou o surgimento de uma oposição cristã, com pastores como Karl Barth, Martin Niemöller e Dietrich Bonhoeffer. Este último, enforcado, outros, presos em campos de concentração. Isso, porém, não impediu que Hitler, também atraído pela morte, levasse a Alemanha à guerra e ao holocausto dos judeus. No Brasil, só alguns pastores destoam do culto prestado a Bolsonaro.
Quando acabar esse pesadelo no qual vivemos, o evangelismo e o protestantismo brasileiro deverão também assumir sua responsabilidade, como fizeram, depois da guerra, os luteranos e evangélicos alemães enfeitiçados por Hitler. Mas aí terão perdido muito de sua credibilidade.
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.