Deveria preocupar mais os analistas o fato de o Brasil ter ultrapassado a marca de 11 mil mortos pela covid-19 neste início de maio e, mesmo assim, a atenção pública estar voltada à figura do presidente. Nem mesmo uma pandemia foi capaz de tirar de cena o destaque do controverso mandatário máximo da nação, sobretudo em suas idiossincrasias e repetidas contradições – tudo isso já reconhecido como parte da montagem de um personagem eleitoral. O foco voltado ao presidente não significa, no entanto, que a população está mais vigilante em relação ao governo, ao papel do Estado brasileiro e às políticas públicas – o que seria um avanço.
Os marqueteiros do Planalto empenham-se, neste período de distanciamento social, em gerar fatos por domingos consecutivos. Assim, as ações presidenciais ocupam as agendas midiática, pública e das instituições a cada fim de semana, com certeiras reverberações na segunda-feira. No atual contexto, isso não é pouca coisa: a persona é assunto principal justamente no dia reservado ao “descanso” das demais ofertas de informação da cobertura política.
Na tarde do primeiro domingo de maio, o site da Folha de S.Paulo estampava a manchete “Em ato contra STF e Congresso, Bolsonaro diz que Forças Armadas estão ‘ao lado do povo’”, acompanhada de uma foto composta por apoiadores e mandatário. Após noticiar algo semelhante, o site do Estadão atualizou a manchete para “Profissionais do ‘Estadão‘ são agredidos com chutes e socos por apoiadores de Bolsonaro” – partindo já para os desdobramentos. A principal foto mostrava bandeiras, apoiadores e o Palácio do Planalto ao fundo. Ao mesmo tempo, a manchete d’O Globo na web era “Bolsonaro dá aval a protesto contra Moro, STF e Congresso e diz ter apoio das Forças Armadas” – a foto principal, por contraste, mostrava paciente de covid-19.
Em linha aparentemente mais analítica, o El País destacava: “Bolsonaro tentar submeter a PF a ele é ilegal, mas quem tem competência para lidar com isso é o Congresso” – título que é uma fala de Rafael Mafei, da USP, como (sub)informava a linha de apoio. Logo abaixo, vinha a chamada para a cobertura ao vivo do ato em Brasília: “’Não vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência’, diz presidente em ato contra o STF e Congresso”. Duas citações diretas (em aspas) para o mesmo protagonista. Com foto da carreata, o destaque do UOL era “Ato pró-Bolsonaro no DF tem carreata, ataques ao STF e à quarentena”. A BBC Brasil dedicava, ao mesmo tempo, manchete para a política de Trump no combate à pandemia. Logo abaixo, o primeiro destaque secundário, com foto do presidente saudando apoiadores, era “Sem máscara, Bolsonaro participa mais uma vez de ato com críticas a STF e Congresso”. O Yahoo Notícias apresentava como manchete: “Em live, Bolsonaro participa de ato contra STF”, ao lado de foto do presidente acompanhado da filha, de 9 anos de idade.
Uniformização da agenda
Em linhas gerais, percebe-se que os sete veículos informativos dão visibilidade ao ato de domingo a partir da figura do presidente. Como efeito imediato, é dele que se fala, para o bem ou para o mal. Seu nome está presente e ganha repercussão nos sites, assim como as fotos evidenciam sua presença ou apoio. De modo mais estratégico, o resultado é uma uniformização da cobertura. O nome e a ação presidenciais são pontos de consonância entre distintas (?) ofertas discursivas. Pode-se imaginar que poucos noticiários (impressos, radiofônicos, televisivos ou novamente na web) conseguintes vão ignorar ou deixar de reverberar os atos de domingo semana adentro.
Ainda pela manhã, em redes sociais como o Twitter, os usuários tratavam de repercutir as primeiras notícias sobre o ato, além de replicar ou fazer circular espontaneamente imagens produzidas por manifestantes ou pela equipe de apoio do presidente. O fato ganhou existência, assim, na agenda pública, tanto por força de detratores e críticos quanto de apoiadores do executivo – em comum, o nome e a imagem presidencial. Esse ciclo se repete há pelo menos quatro domingos.
Com a investida de manifestantes contra jornalistas, justamente no Dia da Liberdade de Imprensa, órgãos de classe se viram obrigados a publicar manifestações – e, assim, o fato de domingo envolve a agenda das instituições. O modus operandi é similar ao da semana anterior, quando atos antidemocráticos levaram a inúmeras respostas e posições públicas das instituições e entidades, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Supremo Tribunal Federal (STF), Câmara dos Deputados, Senado Federal, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), governos estaduais, entre outras. O ato pontual dominical caminha, por assim dizer, da agenda política do grupo organizador para a agenda pública das redes sociais, perpassa a agenda jornalística e se transforma em ordem do dia para instituições (nesse contexto, devidamente ocupadas, até então, com demais urgências do combate à pandemia, pode-se imaginar).
O presidente falado
Para além dessa conformação ou uniformização da agenda jornalística, um segundo fator a se considerar é o de que a força do agendamento da figura presidencial reside, ao menos até agora e dentro da estratégia eleitoral dos marqueteiros, na simples presença do tópico na agenda – como prescreve o chamado primeiro nível do efeito de agenda-setting, famosa hipótese proposta pelos pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw no estudo das eleições norte-americanas em 1972. A hipótese faz referência à capacidade da mídia propor o que as pessoas devem pensar – haveria, então, a transferência da saliência das questões públicas da cobertura jornalística para a agenda do público.
As seguidas ações dominicais do presidente são obviamente alarmantes, desconcertantes, antidemocráticas ou ao menos suspeitas. Ainda assim, independente de tais avaliações, os registros e os relatos dos eventos sustentam a visibilidade da figura presidencial na ordem do dia. Não de modo pacífico, mas tenso, “desgovernado”, por assim dizer, obrigando que tantas e tantas fontes tomem partido, falem a respeito – em outras palavras, obrigando a sociedade a se agendar por isso.
Até aqui, ao que parece, a aposta dos apoiadores do presidente se dá na presença do tema “Bolsonaro”, sobrepujando atributos, características, abordagens mais ou menos favoráveis, ou aquilo que se chama de valência positiva ou negativa na Ciência Política. Encontra-se em ação no tecido social político brasileiro algo que lembra o poder de primeiro nível de agendamento anunciado por McCombs e Shaw, voltado a manter na agenda a personalidade errática enquanto o restante da cobertura jornalística sobrevoa as covas coletivas e usuários de redes sociais se posicionam contra ou a favor do governo, potencializando a circulação das mesmas imagens e dos mesmos eventos (não raro patrocinados pelo marketing presidencial). A reação ao desgoverno, por sua vez, concentra-se nos atributos, nos aspectos do debate, avalia narrativas, mas, para isso, aceita antes o tópico, aceita de bom grado o termo Bolsonaro como questão pública na ordem do dia.
O sequestro da análise
Por fim, como breve apontamento (mas não menos preocupante), cabe pensar sobre o que representa o imperativo do hard news presidencial aos domingos. Ao suscitar ampla atenção da cobertura noticiosa, os fatos ligados a Brasília deslocam o tempo antes dedicado para páginas e páginas de análise – um tipo de retrospectiva interpretativa da semana. A leitura de domingo, em geral, reservava mais tempo a analistas, colunistas e suplementos capazes de trabalhar a inteligibilidade dos fatos amontoados de segunda a sábado. Não surpreende, portanto, que a máquina de propaganda bolsonarista queira disputar esse que era um dos últimos terrenos da reflexão e que já enfrentava dificuldades estruturais (os desafios do mercado do jornal impresso são inúmeros desde a emergência de notícias no celular). Sabe-se, no entanto, que o rito da leitura do jornal de domingo vai muito além do contato com o papel; expressa uma vontade de melhor compreender a atualidade, uma pequena pausa no fluxo de acontecimentos e ofertas informativas de pequeno alcance. O caráter problemático dos fatos de cada domingo demanda mais interpretação; no entanto, seu tempo foi roubado por mais e mais divulgação e cobertura em tempo real. Isso também encontra-se em disputa e pode custar ainda mais caro à cultura jornalística brasileira.
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Rafael Schoenherr é jornalista, doutor em Geografia e professor do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Gisele Barão da Silva é jornalista e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).