Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os acionistas do Brasil: entre o risco e a recompensa

Foto: Diego Grandi/Shutterstock

O Brasil dos poderosos e dos grandes investidores estrangeiros, diante do pouco tempo para as eleições presidenciais de 2022, tem se questionado. O país encontra-se em uma tripla turbulência, brutal e destrutiva, de ordem econômica, sanitária e social. O cheque em branco que deram ao candidato presidencial de extrema-direita, em 2018, Jair Bolsonaro, inicialmente, funcionou bem. O ex-capitão foi eleito. O PT e o seu candidato de última hora, Fernando Haddad, foram derrotados. O antigo presidente, fundador do PT, Lula, foi encarcerado, algumas semanas antes do prazo, após uma condenação humilhante e moralmente devastadora. Empresas, mídias, redes comerciais de vendas, parte do aparelho jurídico, igrejas evangélicas e as forças armadas, reunindo suas forças, pouparam Jair Bolsonaro, um candidato sem programa ou capacidade discursiva, do ‘sofrimento’ de participar de debates públicos, de ser contradito e questionado.

Dois anos mais tarde, os resultados da gestão presidencial do antigo capitão são, sem dúvida, desastrosos e dramáticos para os mais modestos. Para os poderes econômicos e financeiros, se isso não se deu da mesma forma, de início, chegou agora o momento do descontentamento. Verdadeiros representantes de uma cultura do presenteísmo fundada na lógica do retorno imediato do investimento, eles agora sentem que o alarme da substituição disparou. A ‘marca’ Brasil precisa de um outro PDG, de um novo diretor.

O primeiro episódio dessa novela parecia confirmar a sorte e o acerto desses poderes nessa aposta: a escolha Jair Bolsonaro se mostrou alvissareira. Assim que tomou posse, o seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Araújo, deixaram claro que o Brasil estava regressando à ordem ocidental há muito estabelecida ao renunciar a seu papel competitivo no círculo dos “Grandes”. O Brasil abandonou as organizações que haviam sido desenhadas com vistas ao estabelecimento de um perímetro regional assertivo e forte com vistas à visibilidade e efetiva atuação dos países da América Latina no cenário mundial, a CELAC [1] e a UNASUL [2]. O Brasil uniu-se aos grupos panamericanos, o Grupo Lima [3] e o Prosul [4]. Negociou a sua adesão à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Este regresso consentido à periferia política e diplomática mundial foi acompanhado da privatização de setores econômicos estratégicos do país (com a abertura parcial de capital da Petrobrás, dos Correios, do Porto de Santos, de 12 aeroportos, da Eletrobrás, da Telebrás, da ABGF, da Emgea etc.). Desde a entrada de Bolsonaro, o país foi bem mais generoso com os investidores estrangeiros. A fabricante de aeronaves Embraer, visada pela Boeing, recebeu ‘sinal verde’ do governo [5]. Esta abertura para o mercado internacional foi estendida inclusive sob a forma de liberação de compra de terras brasileiras por estrangeiros, o que até então era interditado. O julgamento da Lava Jato, que visava combater a corrupção, confirmou esta orientação ainda mais. Esse julgamento reduziu, em muito, o poder das multinacionais do país, muito mais do que o de seus gestores, responsáveis pelos crimes financeiros. Desse modo, as empresas brasileiras de visibilidade e de atuação globais foram diretamente afetadas e permanentemente enfraquecidas. Quatro anos após o início do processo, os principais atores no cenário internacional de condução de obras públicas no Brasil e em diversos outros países, Andrade Gutierrez, Camargo Correa, OAS, Odebrecht, foram afastados da concorrência nos principais editais de obras nos países da América Latina. Em seu lugar, assumiram a liderança as empresas chinesas CCCC – China Communications Construction Company, China Harbour Engineering Company, China Raiway 20; a coreana Hyundai Engineering and Construction; as empresas espanholas Acciona, ACS, Dragados, FCC, OHL; a francesa Engie; e a portuguesa Mota-Engil [6].

A equivocada abordagem da economia por este governo, assim como em resposta ao desafio pandêmico, desconcertou e enfureceu rapidamente vários agentes econômicos nacionais e estrangeiros. As injúrias endereçadas à China pela família Bolsonaro provocaram uma dupla reação, de um lado a do embaixador de Pequim em Brasília, do outro, a dos agroexportadores brasileiros. Afinal, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. A nomeação de um general, Joaquim Silva e Luna, para dirigir a companhia petrolífera nacional, Petrobrás, tem enervado o mercado. As ações da Petrobrás perderam 20% do seu valor. O Brasil, decaiu da 9ª maior economia mundial para a 14ª, desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente.

A negação da pandemia não apenas gerou uma catástrofe sanitária que saiu do controle, como também aumentou a desconfiança em relação ao país. O Brasil se tornou o país com maior taxa de contaminação pela doença em março de 2021, com uma média de 2.000 óbitos diários. No início de março de 2021, 20% das mortes registradas no mundo ocorriam no Brasil [7]. A variante brasileira, mais contagiosa e agressiva, do vírus se alastra no país. Os hospitais estão lotados, em dezessete capitais brasileiras e os leitos de UTI estão 100% ocupados. A vitalidade da economia, que teria sido supostamente preservada graças à ausência de medidas de contenção necessárias, como o lockdown, e que não foram decretadas pelo governo federal, é grandemente desestabilizada pela magnitude do estrago da Covid-19 junto à população. Hoje, não são apenas os mais pobres que são afetados. As classes médias e os expatriados, agora afetados, estão cada vez mais preocupados. O presidente do Citybank Brasil, por exemplo, sinalizou “a sua grande preocupação com a sua família e com os seus funcionários” em entrevista à agência Bloomberg em 17 de março de 2021. Ele disse: “Quando venho ao meu escritório pela manhã, penso constantemente no risco que todos estamos correndo.” [8]

Tal cenário permite melhor compreender o ‘canto de despedida’ que tem sido entoado ao longo desses meses por importantes multinacionais, uma vez que, a redução dos investimentos por parte do mercado estrangeiro no Brasil, em 2019, foi da ordem entre 11,1 bilhões de dólares a 24 bilhões de dólares em 2020 [9]. A Ford abriu o baile dos desinvestimentos, em 2019. Desde então, foram anunciadas as saídas parciais ou totais, de diversas empresas, do país, como os anúncios da Audi, da Engie, da FNAC, da Mercedes, da Nikon, da Sony e da Roche. A queda no número de consumidores, resultado de uma gestão política errática, de um crescente isolamento internacional e dos efeitos de insegurança na saúde, está na origem dessas debandadas das multinacionais [10].

A questão claramente colocada hoje por alguns dos que apostaram em Jair Bolsonaro é a da necessidade de afastá-lo. A aposta inicial em sua gestão, e o aceno com os benefícios de uma política econômica ultraliberal, dissiparam-se frente ao risco econômico e sanitário produzido no país por sua gestão.

O sistema de justiça voltou a funcionar, tal como aconteceu em 2016 e 2018. Em 2018, sob a pressão de generais, o Supremo Tribunal Federal validou a prisão de Lula. Essa prisão, hoje todos sabem, foi realizada sem provas materiais concretas e robustas, simplesmente com base em declarações de um informante, em um processo jurídico que chegou a seu termo em 2016, sem qualquer respeito à lei. O juiz de 1ª instância, da vara de Curitiba, Sérgio Moro, condutor do processo, recebeu os agradecimentos por essa prisão, em 2019, no dia seguinte à eleição, por parte de um ministro do atual gabinete. Ele também assumiria, logo em seguida, um superministério no governo que ajudou eleger, ao tornar inelegível o principal concorrente na disputa eleitoral, o ex-presidente Lula. Recentemente, em 2020 e 2021, os juízes da suprema-corte, restabeleceram os direitos civis de Lula, tendo optado pela anulação de uma série de sentenças proferidas contra ele, antes da eleição presidencial de 2018.

Esta reviravolta judicial baseia-se evidentemente na lei. Mas ela também se fundamenta em um cenário politizado, agora em 2021 como foi o de 2016 e o de 2018. A mídia é cada vez mais crítica com o governo de Jair Bolsonaro. Os grupos ativistas do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (PT), que atuaram em 2016, como o “Movimento Brasil Livre” e o “Vem Pra Rua” começam a se mobilizar para literalmente “livrar a sua pele”, ameaçada, de acordo com os seus slogans, por Jair Bolsonaro. Enquanto um antigo bolsonarista e hacker, Walter Delgatti, revela o conteúdo de trocas telefônicas comprometedoras durante o julgamento de Lula, ocorridas entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores encarregados da acusação, a direita “racional”, que se uniu a Jair Bolsonaro na reta final das eleições de 2018, uma vez que não tinha um candidato viável capaz de vencer o PT, têm demonstrado, cada vez mais abertamente, o seu mal-estar com essa parceria naquela ocasião. João Doria, governador de São Paulo, integrante do PSDB (centro-direita), se distanciou de Bolsonaro, depois de ter vencido usando camisetas com o slogan BolsoDória, e agora lidera o seu barco no combate à pandemia do coronavírus, sem levar em conta o presidente. Gilberto Kassab, líder de centro-direita do PSD, no dia 16 de março, lembrou o retorno de Lula ao cenário político, o que segundo ele “significa claramente o restabelecimento da esquerda”. Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda durante a Ditadura Militar, foi ainda mais longe, dizendo que votaria em Lula em 2022, caso este concorresse às eleições presidenciais.

Os porta-vozes dos principais investidores da “Comunidade Internacional” assinalaram o mesmo incômodo com o atual governo e as suas expectativas de mudança. O Presidente francês Emmanuel Macron arquivou a assinatura de um possível acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, enquanto o Brasil não cumprir o acordo de Paris relativo ao aquecimento global. O novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em resposta à mensagem de felicitações enviada por Jair Bolsonaro, após a sua eleição, assinalou a sua expectativa de uma convergência dos dois países para combater a pandemia e no respeito ao acordo de Paris sobre o clima. Os países vizinhos, Argentina, Paraguai e Uruguai, fecharam as suas fronteiras ao Brasil, para evitar o alastramento descontrolado da pandemia que viceja em terras brasileiras, e que ameaça a segurança sanitária da América Latina. A OCDE, finalmente, abriu uma investigação sobre a propagação da corrupção no Brasil desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Essa é a primeira vez na sua história que o subgrupo anticorrupção da organização criou um instrumento permanente de investigação. Finalmente, 116 países do mundo impõem restrições severas à entrada de cidadãos brasileiros em seus territórios.

No entanto, as jogadas eleitorais não acabaram. As pesquisas preveem uma vitória fácil de Lula sobre Bolsonaro em 2022. Porém, Jair Bolsonaro ainda tem uma base relativamente grande de apoiadores. Lula não é unanimemente apoiado pela oposição de esquerda. O PSOL estabeleceu certas condições para o apoio. O potencial candidato do PC do B à presidência, defendeu a opção de uma ampla aliança centro-direita e esquerda no primeiro turno, ou, pelo menos, no segundo. O PDT mantém a perspectiva de uma candidatura, a de Ciro Gomes. Alguns decidiram votar em Lula como um mal menor. Mas nem todos da esquerda estão (ainda não?) prontos para levar a sua rejeição de Jair Bolsonaro até esse ponto. Para todos os efeitos, a Justiça permanece em alerta. Uma Justiça que, em boa hora, segue o ar dos tempos políticos. O caso de Lula foi transferido de Curitiba para Brasília para um novo processo. Os bens pessoais de Lula permanecem bloqueados. A dúvida que fica é se essa mesma Justiça vai permitir que Lula concorra à eleição presidencial?

Texto publicado originalmente em francês, em 22 de março de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Les actionnaires du Brésil. Pris entre risque et aubaine”. Tradução: Andrei Cezar da Silva e Jeniffer Aparecida Pereira da Silva. Revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.

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Notas

[1] Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), organismo internacional, para promoção da Integração e do Desenvolvimento da América Latina e Caribe, criado em 2010, no México, como forma de garantir um espaço internacional de relevo e de participação desses Estados, em uma série de questões humanitárias, político-decisórias e econômicas.

[2] União das Nações Sul-Americanas, organização intergovernamental composta por doze países da América do Sul, criada em 2010, com base nos ideais da integração sul-americana multissetorial, de união supranacional, de modo a englobar, do ponto de vista das parcerias econômicas estratégicas de cooperação regional, o Mercosul e a Comunidade Andina.

[3] Constituído em 8 de agosto de 2017, o grupo é composto por Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Guiana e Santa Lúcia, sob indisfarçável batuta norte-americana, com ênfase na situação da Venezuela.

[4] Intitulado como ‘Foro para o Progresso da América do Sul’, o grupo foi constituído em 2019, com representantes da direita de países da América Latina.

[5]As negociações dessa incorporação da Embraer pela Boeing, quando estavam quase concluídas, foram rompidas por esta última em 2020.

[6] Cf. Laura Villahermosa, Construtores chineses e europeus preenchem o vazio deixado pela Odebrecht e outras empresas. In: Americaeconomia, 8 março de 2021.

[7] Foram contabilizadas 279.286 mortes em 15 de março de 2021, o que fez do Brasil o país com mais mortes, ficando somente atrás dos Estados Unidos (com 525.661 mortes) e à frente do México (com 194.944), conforme dados da BBC Brasil, de 17 de março de 2021, no texto intitulado Raio-x da pandemia. Hoje, ao final do mês de março são mais de 300.000 vidas perdidas.

[8] Citado por “Brasil 247”, em 18 de março de 2021.

[9] Cf. em Ambito financiero, 7 de outubro de 2020.

[10] Cf. “Istoé”, 12 de março de 2021, edição 2669.