A terra é redonda, et pur si muove. Palavrão é feio, sim, e liberdade nada tem a ver com hemorróida, como Bolsonaro bradou naquele vídeo, atentam contra a nossa hemorróida, a nossa liberdade.
A Noite dos Cristais encheu as ruas da Alemanha nazista em 1938 de cacos de vidros das lojas dos judeus e matou 90, não pode ser comparado à operação da polícia contra fake news como Abraham Weintraub tuitou, “TENHO DIREITO DE FALAR DO HOLOCAUSTO, MINHA LIBERDADE”. Liberdade de Expressão vai até onde começa o discurso do ódio.
Você não está louco, tudo o que acontece no Brasil tem sinal trocado. Quando Bolsonaro fala em democracia leia ditadura. Quando quer todo mundo armado leia acabar com a liberdade. Se ouvir ruptura, troque para endurecimento do regime. Quando os militares afastam a hipótese de golpe, fique de orelha em pé. Nada disso tem a ver com esquerda e direita mas com civilização e barbárie.
Não, desobediência e afronta a poderes constituídos tem limite, sim. Um presidente da República não pode ignorar uma ordem do Superior Tribunal Federal. Não é verdade que alguém esteja acima da lei. O ministro da Educação não pode chamar ministros do STF de vagabundos nem ser blindado para não prestar depoimento mas, ao fazê-lo, fez o melhor papel de sua atuação: ficou calado, que fique sempre. Filhos de presidente não podem governar nem ameaçar o país com ruptura se o caldo engrossar… para o lado deles.
Um presidente não pode ser “morbidamente honesto“, nem “pode ser burro mas não ladrão” como defendeu o guru do Alvorada, Olavo de Carvalho. Um presidente não pode ser mórbido, nem burro ou louco. Também não pode ser propenso à morte e à guerra no meio da pandemia que nos coloca no 2º lugar de maior contágio no mundo, com mais de 500 mil contaminados. O que está matando 30 mil brasileiros não é o isolamento, mas o vírus.
Um procurador é “da República” não do presidente. A Polícia Federal serve aos brasileiros, não aos interesses políticos. Weintraub não pode ser condecorado com a Ordem ao Mérito Naval: ele carece de mérito. Não tem mal que dure para sempre. Não é o fim se o vergonhoso acordo com o “centrão”, rejeitado por 67% da população, impeça o impeachment de alcançar 342 votos dos 513 deputados do Congresso. Pelo menos cinco ações, como o disparo em massa de notícias falsas (leia Carluxo), prevaricação ou abuso de autoridade, podem garantir ao STF a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
A saúde merece um ministro e não mais um comandante da Polícia Militar à frente do órgão, como Bolsonaro colocou Giovanne da Silva na presidência da Fundação Nacional da Saúde, cumprindo o acordo com o “centrão”. Os militares já ocupam 2,9 mil cargos no governo. A educação não merece um assessor do líder do “centrão”, Marcelo Lopes da Ponte, para presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (aporte de R$ 55 bilhões ano passado). O Rio de Janeiro não merece mais um governador atrás das grades ou investigado como Sérgio Cabral, Pezão, Garotinho ou Rosinha, antes de Wilson Witzel.
“Eu quero todo mundo armado”, o grito pré-iluminista, medíocre e grosseiro de Bolsonaro entre dois palavrões deve ser desconsiderado, sim. E colocado em seu lugar a opção do ministro Luís Roberto Barroso do TSE “Precisamos armar o povo com educação, cultura e ciência”. A milícia digital, digamos máfia, não é todo o Brasil. E a imprensa não pode ser sufocada nem atacada nas ruas. A imprensa estrangeira não é comunista. Imprensa é o respirador da democracia.
O que Ricardo Salles estava fazendo à frente do Fundo Amazônia, de onde foi destituído por Mourão, de olho no resgate dos mais de R$ 3 bilhões da Noruega e Alemanha em fundos do tempo em que o meio ambiente era respeitado? E o que Regina Duarte faria na Cinemateca brasileira que está prestes a ser fechada, com seus tesouros, porque o governo achou melhor se livrar da dívida de R$12 milhões?
De onde vieram esses personagens que hoje representam e ameaçam o Brasil, que não enxergávamos antes? De onde vieram mulheres como Sara Winter, de 27 anos, germinando fake news e fazendo alusão à Ku Klux Klan à porta do STF para “trocar socos” com o ministro Alexandre de Moraes? E as Damares e as Carlas Zambellis, envergonhando uma geração, dos baby boomers (na qual me incluo), que lutou para não apenas nascer mulher mas se tornar mulher como pregava Simone de Beauvoir? Quem vai ter ainda coragem de dizer lá fora “eu sou brasileiro ou brasileira”? Sim, a vergonha de saber o que o mundo está ouvindo deste governo: é maior do que a de virmos a ser um país de miseráveis, pela maior deflação do real em 24 anos ou um país de incultos. A imagem derreteu, o mundo tem medo do Brasil.
“Cala boca” não calou. As manifestações nas ruas neste domingo nos lembram de que “somos 70%” contra as aberrações de Bolsonaro que, quando fala em autogolpe, aí sim, leia Iminência de um golpe. Manifestos como estamos juntos circulam com mais de 200 mil assinaturas entre jornalistas, artistas, professores, filósofos, escritores, universitários. E basta já conta com 720 assinaturas de profissionais de Direito. Ex-chanceleres e embaixadores se articulam contra a diplomacia de Ernesto Araújo, “olham para nós com incredulidade”, diz Rubens Ricupero. E Celso Lafer define assim a meta final do grupo recém criado: conseguir do Congresso “o controle político e a fiscalização exterior do governo Bolsonaro”.
Vai muito além de partidos políticos a união de dissidentes e ex-rivais contra os 30% de milicianos, evangélicos e militares, que junto com a central de fake news formam seu colchão de sustentação. É a união de uma extensa camada do Brasil que prefere chamar Bolsonaro de “vosso presidente” e não de “meu presidente”. São os 70% (manifesto #somos70porcento) que não entendem nada do que ouvem ou vêem, e percebem que vem por aí um golpe se não agirmos rápido.
Como isso tudo aconteceu? Como permitimos que a pandemia da estupidez humana cruzasse a linha da democracia em direção ao caos? Philip Roth morreu há dois anos e não viveu para saber o que acontece com os Estados Unidos e o Brasil em 2020, Trump & Bolsonaro. Mas escreveu em 2004 um livro profético que acaba de virar minissérie na Netflix, The Plot Against America (Complô contra a América).
Roth imagina que o aviador americano Charles Lindberg foi eleito presidente nos Estados Unidos de 1940, em vez de Franklin Delano Roosevelt. Antissemita, nacionalista e xenófobo, alérgico a imigrantes e pessoas não brancas, o herói que havia feito o primeiro vôo sozinho entre Nova York e Paris era um simpatizante do nazismo. Assim mesmo foi eleito com apoio do rabino Lionel Bengelsdorf (o ator John Torturo) que conclamava judeus a ficar ao lado de Lindberg porque “Roosevelt iria levar os americanos à guerra”. O resultado é catastrófico e a chave da mini-série é imaginar os Estados Unidos rumando para o fascismo durante a Segunda Guerra. O voto errado! Além disso, é um alerta contra o medo.
É sobre como medo age nas pessoas que o sociólogo austro-húngaro, Frank Furedi, trata. How Fears Work (Bloomsburry), é sobre a cultura do medo no século XXI que, ao tomar conta das pessoas, induz ao abandono das liberdades. A primeira vítima é a liberdade de expressão. O medo mina o risco de se discutir qualquer assunto. Aliado à ignorância e à dominação populista, o medo pode levar o rebanho para o abismo. Furedi nos fala de coisas familiares. Isolados na quarentena lutamos duas vezes contra um mal que não conhecemos nem temos a cura, e contra o vírus do bolsonarismo.
A sociedade civil está agindo, a maioria dos procuradores indignada com a “compra” do Procurador Geral Augusto Aras por Bolsonaro, e os ministros do STF, TCU e TSE se armando. “É preciso reagir à destruição da ordem estabelecida”, alerta Celso de Mello, que comparou o Brasil com a Alemanha nazista na ascensão de Hitler.
Acaba de sair a nova tradução de Íliada, poema épico escrito no século IX a.C. pelo grego Homero. Mario Sergio Conti (FSP,30/5) nos traz a lição de como agir sobre os “fatos em fúria”. Mesmo que o medo não permita ver o futuro e (o medo) projete uma iminente derrota, o heroísmo homérico consiste em nunca se submeter à força. Neste momento de sinais trocados, a poesia e a ficção podem ensinar alguma coisa.
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Norma Couri é jornalista.