Desvelar as intenções que estão por trás dos noticiários políticos da grande imprensa brasileira nem sempre é uma tarefa fácil.
É fato que os principais grupos de comunicação do país atendem, inexoravelmente, aos interesses do grande capital. Sendo assim, não é difícil identificar o apoio quase automático desses grupos aos tradicionais partidos ligados à direita do espectro político.
No entanto, por que, em ocasiões pontuais, a imprensa hegemônica passa a dedicar consideráveis espaços em seus jornais e revistas para noticiar (positivamente) determinados nomes da esquerda política?
Estaria a grande mídia adotando uma linha editorial em favor da divulgação da pluralidade de ideias presentes em nossa sociedade, o que significa praticar um jornalismo voltado para o desenvolvimento positivo da democracia brasileira?
A não ser que queiramos ser demasiadamente ingênuos, a resposta, evidentemente, é negativa. A mídia não dá grande visibilidade a um nome de esquerda sem que isso não traga algum benefício concreto para as forças políticas e econômicas ligadas ao grande capital.
Isso explica, por exemplo, o porquê de o atual candidato à prefeitura de São Paulo pelo PSOL, Guilherme Boulos, estar tão presente em matérias da Veja, O Estado de São Paulo, Folha de S.Paulo e demais órgãos da imprensa hegemônica.
Trata-se de mais uma etapa da manobra política que tem por objetivo eliminar o Partido dos Trabalhadores do cenário eleitoral brasileiro; o que nos remete, pelo menos, às jornadas de junho de 2013 e ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, concretizado em 2016.
Vamos aos fatos.
Guilherme Boulos ganhou bastante destaque na imprensa brasileira em 2014, como um dos principais nomes das mobilizações populares genericamente conhecidas como “Não vai ter Copa”, que, em última instância, funcionaram como uma espécie de braço esquerdista do movimento que, na época, já articulava a queda do governo de Dilma Rousseff.
Não por acaso, em junho do mesmo ano, Boulos tornou-se colunista semanal do site da Folha de S.Paulo.
Por que um dos principais grupos de comunicação do país cederia espaço para alguém historicamente ligado a movimentos sociais? A resposta é simples: Boulos dedicava grande parte de seus escritos, justamente, para tecer críticas ao PT.
Em março de 2017, com o processo de impeachment mais do que consolidado, Boulos deixou de ser colunista da Folha de S.Paulo. Sua missão estava cumprida.
Já na atual corrida eleitoral para a prefeitura de São Paulo, elites econômicas e mídia enxergam na chapa psolista Boulos-Erundina uma excelente oportunidade para reforçar sua campanha de eliminar o PT do cenário político.
A estratégia consiste em divulgar ao máximo a candidatura do PSOL e, por outro lado, ceder o mínimo espaço nos noticiários para a chapa petista, encabeçada por Jilmar Tatto.
Isso não significa que Boulos seja o nome apoiado pelo grande capital para ocupar a prefeitura da maior cidade do país. Longe disso. Sua função na eleição é, simplesmente, tirar os votos que poderiam ser destinados ao PT.
As manchetes e os títulos dos artigos de opinião publicados na grande mídia não deixam dúvidas sobre essa questão.
Em agosto, antes de as candidaturas municipais serem oficializadas, a Folha de S.Paulo já apresentava uma matéria com o emblemático título “Caetano, Chico e ex-petistas dão apoio a Boulos em SP e reforçam resistência da esquerda a nome do PT”.
De acordo com o periódico da família Frias, a candidatura de Tatto é “pouco produtiva em energizar a militância petista, que já começa a registrar sinais de debandada para outras pré-candidaturas, principalmente a do PSOL”.
Ainda em agosto, na matéria intitulada “Constrangido, Lula reluta em apoio a Tatto para não melindrar Boulos”, a Folha recorre a uma série de boatos para insinuar que o ex-presidente estaria sendo pressionado pelos seus próprios correligionários para abandonar a candidatura Tatto e apoiar Boulos à prefeitura paulistana.
Em sua cobertura sobre o lançamento da chapa Tatto-Zarattini, a Folha deu mais destaque a Guilherme Boulos do que propriamente ao candidato petista, enfatizando que o evento foi um “repeteco do PSOL” (por também ter sido realizado em um bairro da periferia).
No programa Band Eleições, a jornalista Sheila Magalhães questionou Boulos se Lula votaria nele ou em Jilmar Tatto para a prefeitura de São Paulo.
Apesar de o ex-presidente votar no município vizinho de São Bernardo do Campo, a capciosa pergunta nos revela mais uma armadilha discursiva com o objetivo de isolar a candidatura petista.
Outras manchetes presentes na grande imprensa demonstram essa linha editorial: “Líderes comunitários trocam PT por Boulos nas eleições em São Paulo” (O Estado de São Paulo), “São Paulo: Boulos se descola de França, humilha o PT e sonha com 2º turno” (Veja), “Boulos ofusca PT e deve consolidar Psol na liderança da esquerda em São Paulo” (HuffPost Brasil).
Também é notário mencionar o grande espaço concedido na imprensa (principalmente no jornal O Globo) para divulgação da live que o cantor e compositor Caetano Veloso fará em apoio às candidaturas de Boulos e Manuela D’Ávila (que concorre à prefeitura de Porto Alegre).
Aliás, recentemente, no programa Conversa com Bial, da Rede Globo, Caetano foi responsável por tornar nacionalmente conhecido o youtuber stalinista Jones Manoel, outro nome da esquerda que tem importante participação na difusão do antipetismo.
Já na última sexta-feira (9/10), a revista Veja publicou uma matéria, assinada por Matheus Leitão, que procurou elevar ainda mais o nome de Guilherme Boulos, que, de acordo com veículo de imprensa do Grupo Abril, “poderá ser o maior fenômeno eleitoral de 2020, a novidade mais expressiva das urnas desde a vitória de Jair Bolsonaro em 2018”.
Deixando claro o que a grande mídia espera da eleição paulistana, a matéria, logo em seu terceiro parágrafo, aponta que a “base petista, […] pode entender que Boulos é o único candidato da esquerda viável em São Paulo, e despejar, ainda no primeiro turno, seus votos no PSOL, num movimento inédito na capital paulista”.
Em sequência, o texto de Leitão não se furta em tecer rasgados elogios à figura do candidato psolista: “Boulos já é um dos fenômenos dessa eleição pela capacidade de comunicação. Sua fala é fácil e carismática […] mesmo que fique apenas na posição de terceira via, Boulos pode colocar uma nova equação nas eleições presidenciais de 2022”.
Ao se referir a essa “nova equação nas eleições presidenciais de 2022”, a matéria de Veja levanta a possibilidade de Boulos (ou qualquer outro nome viável fora do PT) ser “a nova cara da esquerda como opção ao bolsonarismo de extrema-direita”.
Em outras palavras, isso significa que não basta tirar votos do PT nas eleições municipais deste ano, também é preciso inviabilizar uma possível candidatura do partido no próximo pleito presidencial.
Por fim, é importante ressaltar as diferenças fundamentais entre Partido dos Trabalhadores e Partido Socialismo e Liberdade, que, em essência, são responsáveis pelas representações midiáticas negativas (em relação ao PT) e positivas (sobre o PSOL).
Mesmo com todo seu caráter conciliatório e total integração ao status quo político, o PT ainda mantem fortes ligações com sindicatos e movimentos sociais, fatores que concedem ao partido uma potencial capacidade de mobilização das massas (sobretudo se formos levar em consideração a grande popularidade de seu principal nome, o ex-presidente Lula).
Também é importante lembrar que o PT, mesmo com todos ataques da imprensa nos últimos anos, ainda é a sigla partidária preferida de 15% dos eleitores brasileiros (conforme apontam dados coletados pela pesquisa “Atlas Político”, realizada no ano passado). Esse eleitorado fiel não pode ser menosprezado no jogo político.
Por outro lado, o PSOL é, inerentemente, uma organização política de classe média. Sem base popular, as principais pautas do partido — questões como identitarismo, lugar de fala, linguagem não-binária e apropriação cultural — são estranhas ao grosso da população, mais preocupado com a própria sobrevivência diária.
Em 2016, por exemplo, o partido foi explicitamente apoiado pela Rede Globo no segundo turno das eleições municipais do Rio de Janeiro. Na ocasião, sua principal base de apoio se localizava na zona sul da capital fluminense (tradicional área de moradia das classes média e alta).
Sendo assim, podemos dizer que, no atual contexto, o PSOL se mostra muito mais palatável do que o PT para que a agenda neoliberal de desmonte do Estado e retirada de direitos da população continue sendo aplicada no Brasil sem maiores contratempos.
Não obstante, a migração do eleitorado do PT para o PSOL (o que se revela a intenção dos discursos midiáticos) é apenas um intermediário para, posteriormente, transferi-lo para o PSDB e demais partidos da direita tradicional.
Diante dessa realidade, parafraseando o maestro Tom Jobim, é plausível concluir que o cenário político brasileiro — com suas armadilhas discursivas, conchavos e manobras ideológicas — definitivamente, não é para amadores.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Acadêmica. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).