Foi com sorrisos que o presidente da República Jair Messias Bolsonaro, responsável por 299 ataques contra o jornalismo nos últimos nove meses, recebeu em outubro uma comitiva de empresários em comunicação da região Sul.
O grupo capitaneado pela Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (ACAERT), Sindicato das Empresas de Rádio e TV – SERT/SC, Grupo ND, de Santa Catarina, Rede Massa, de vários Estados, Grupo RIC, do Paraná, e Grupo Pampa, do Rio Grande do Sul, levou a Bolsonaro a proposta de lançar uma agência de notícias com informações políticas de Brasília, com foco na distribuição de conteúdo para emissoras regionais.
Coincidência ou não, um dos empresários da Rede havia sido recebido pelo presidente da República em agosto de 2019, junto de outras lideranças da mídia catarinense. Na oportunidade, Marcello Petrelli, um dos proprietários da RIC Santa Catarina e Paraná, estava à frente da Acaert, e colocou os meios de comunicação à disposição de Bolsonaro. Ele falou em nome da Associação de Diários do Interior (ADI) e da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) regional.
Na época, um dos coordenadores do objETHOS, o colega e professor Rogério Christofoletti, destacou que “o jornalismo não pode ser servil” e se prestar ao papel de sustentar o governo.
Sobre a Rede Regional de Notícias, muitos formadores de opinião de Santa Catarina replicaram releases sobre a iniciativa, sem ao menos contestá-la. A maioria dos conteúdos evidenciaram que, no final de outubro, a agência começaria suas atividades em Brasília. No entanto, não está disponível na internet, nem nas redes sociais e site oficial da Acaert ou das emissoras, notícias sobre a segunda reunião prevista e o lançamento oficial da Rede.
Segundo divulgado, o serviço será oferecido gratuitamente aos veículos regionais que queiram aderir ao projeto. Ou seja, portais, emissoras de rádio e televisão poderão replicar informações apuradas pela agência.
Vale lembrar que uma das emissoras envolvidas diretamente no projeto, a RIC, é afiliada da Rede Record, de propriedade de Edir Macedo, empresário que recebeu somente no último ano o total de R$ 28,6 milhões de verbas em publicidade do Governo Federal, segundo a Agência Pública.
Os perigos da influência
O grande foco dos idealizadores seria os veículos regionais. Em muitos municípios onde há os quase-desertos de notícias, tem-se apenas uma rádio ou jornal em funcionamento, detentores de toda a informação que circula na região. São cenários de pouca concorrência e maior vulnerabilidade a interesses políticos econômicos.
Petrelli disse que “a estrutura captará as informações para levá-las de forma gratuita, para que cheguem sem filtro à população, que precisa se informar e fazer análises”. O que dá a entender é que as informações serão, de fato, apenas replicadas e não contextualizadas, com o caráter crítico e fiscalizador que se espera da imprensa.
O grande perigo por trás dessa influência, vendido como diferencial pela Rede, é justamente o poder exercido por meio dessas influências regionais. E isso já aconteceu antes: desde 2016, muitos cidadãos, ao ouvirem que a reforma trabalhista seria positiva, sem tempo de pesquisar ou buscar outras fontes de informação, compraram narrativas falaciosas “vendidas” por radialistas ou comentaristas de emissoras.
O feito se repetiu com a reforma da previdência. Tanto esta como a reforma trabalhista tiveram gastos exorbitantes em publicidade, inclusive em canais disseminadores de fake news, no caso da primeira.
E o papel do jornalismo?
Mesmo antes de cursar a faculdade de Jornalismo, em 2010, já me questionava sobre os interesses obscuros que envolviam políticos e empresários da comunicação. Na Região Sul de Santa Catarina, de onde venho, há tempos muitos naturalizam a informação “a Rádio é do Fulano”, que também é quem comanda a cidade. Pois é.
Uma de minhas frases preferidas diz que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. De autoria de William Randolph Hearst, é o tipo de campanha que precisa ganhar outdoors em todo o Brasil.
O papel do jornalismo não é o de ser porta-voz ou assessor de imprensa dos feitos dos Governos, em quaisquer esferas. Seu papel é investigar e fiscalizar tudo o que é feito nos três poderes. Seu papel é prestar informações claras à população sobre os benefícios e prejuízos dos projetos e leis anunciadas. Seu papel é contestar, dar voz ao contraditório.
O jornalismo regional, precarizado em redações estados afora, precisa ser melhor equipado, com jornalistas formados, estudantes de jornalismo, com pessoas cobrando e escrevendo sobre os efeitos das decisões dos políticos nos cotidianos de suas respectivas regiões. O jornalismo regional não precisa de uma fonte extra de releases institucionais.
A Secretaria de Comunicação da Presidência da República e dos ministérios e poderes já cobre atos e projetos do governo e demais esferas. A mídia comercial não precisa repetir o que já vem sendo feito.
“Se é contaminado pelo Governo, não é jornalismo”.
O jornalista e colunista da Folha de S.Paulo/CNN Juca Kfouri enfatizou que a pandemia comprovou como o “jornalismo sério e independente é fundamental para informar corretamente a população”, e que “o jornalismo contaminado pelo governismo não é jornalismo, é impostura. Ensinou, também, como coberturas distorcidas produzem catástrofes”.
O alinhamento entre mídia e políticos, uma das características principais da comunicação brasileira, precisa parar de ser normalizado. Os prejuízos já se arrastam por anos, e a Rede parece querer oficializar a seus afiliados esta prática comum, vista diariamente em diversos rincões do país:
As afiliadas são controladas em vários estados por grupos regionais liderados por políticos ou famílias com tradição política e em geral têm propriedade de mais de um veículo (TV ou rádio, TV ou jornal ou os três). Esse fenômeno passou a ser chamado por parte da academia e no debate público de “coronelismo eletrônico”, termo muito utilizado pela pesquisadora Suzy dos Santos em diversas obras, entre elas o livro “Sempre foi pela família” (2017), parceria com Janaína Aires (MEDIA OWNERSHIP MONITOR BRASIL, 2017)
Cabe a nós, jornalistas, e a toda sociedade o monitoramento de como de fato o sistema irá operar — suas intenções, possíveis edições etc. Nos releases sobre a “novidade”, o grupo afirmou ter independência. Mas um projeto que começa com aval do presidente deixa brechas para infinitas interpretações. Aguardemos os próximos capítulos.
Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
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Tânia Giusti é mestra em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS.