Decidido a destruir tudo quanto o Brasil construiu de bom até hoje, o presidente Bolsonaro aponta agora sua arma contra nossa democracia laica — tem prometido aos evangélicos, sua base de sustentação mais segura, colocar um evangélico no Supremo Tribunal Federal. Não apenas um evangélico, mas um pastor.
Embora sendo um pastor nas horas vagas e, diz-se, de uma linha mais progressista, o escolhido seria André Mendonça, ex-ministro da Justiça, jurista de formação dirigindo a Advocacia Geral da União. Porém, o pastor Mendonça já pecou gravemente pelo menos duas vezes.
A primeira foi de aceitar, como ministro da Justiça, desenterrar a Lei de Segurança Nacional, ainda da época da Ditadura militar, para se poder indiciar em processos quem ousou criticar o presidente Bolsonaro. Resultado: o uso inadequado dessa lei utilizada, há cerca de quarenta anos, para manter os militares no poder serve, atualmente, para amedrontar com prisão ou multa quem se atreve a fazer chacota ou responsabilizar a gestão sanitária do presidente Bolsonaro na pandemia do coronavírus.
O segundo pecado é também importante, pois coloca em dúvida o discernimento jurídico e a formação histórica do ex-ministro da Justiça, André Mendonça, que nos ameaçam de ser promovido a Juiz Supremo. Foi ele, segundo se divulgou com certo alarde e mesmo estupefação, quem mandou apurar, num inquérito aberto há um ano quando ainda era ministro, a ameaça contida num tuíte do ex-candidato à presidência, Guilherme Boulos, no qual estava escrito — “Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luís XIV terminou na guilhotina”. Boulos deverá prestar depoimento na Polícia Federal nesta quinta-feira, dia 29 de abril.
Mas qual é a história dessa ameaça do coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e ex-candidato do PSOL ao presidente? No fundo, o caso se transformou numa piada: Bolsonaro, nosso presidente com vocação absolutista, ao qual se pode aplicar a expressão popular vinda da época da monarquia, ter o rei na barriga (expressão popular usada, diz o dicionário, com referência às pessoas egoístas, arrogantes, presunçosas e prepotentes que se consideram muito mais importantes do que são) tinha declarado, em Manaus, arrotando toda sua empáfia — “Eu sou a Constituição”.
Ora, Guilherme Boulos se lembrou de outro prepotente, o rei Luís XIV da França, que num arroubo de absolutismo, tinha afirmado faz tempo, no século XVII, ” O Estado sou Eu” ou qualquer coisa como “Quem manda na França sou Eu” (parecido com a frase de Bolsonaro “Quem manda nas leis no Brasil, sou Eu”). Luís XIV fazia parte de uma dinastia, ou seja, havia o Luís 01 (XIV), pai do Luís 02 (XV) e avô do Luís 03 (XVI). Gente importante, mas isso não impediu ao Luís 03 ou Luís XVI ser decapitado na guilhotina, depois da Revolução Francesa. E, logo depois, Maria Antonieta, mas isso o Boulos nem disse.
Era uma alegoria, Boulos mandava um recado ao nosso prepotente presidente do tipo — “toma cuidado, Bolsonaro, na França, um rei foi guilhotinado por seu avô ter arrotado tanta arrogância e absolutismo como você”. Porém, o então ministro da Justiça, ao que parece fiel servidor do presidente com vocação absolutista, não gostou da piada alegórica ou quem sabe, pior ainda, temeu realmente pelo pescoço ( ou cou, em francês) do seu querido presidente.
Pastor temente a Deus, progressista como dizem, recorreu à Lei de Segurança Nacional, agora sendo também usada contra outros autores de piadas sobre o Rei Bolsonaro ou utilizadores da palavra “genocida” para designar a maneira como administrou a pandemia do coronavírus, capaz ainda de dar ao Brasil o título necrófilo de “campeão mundial de mortes”, por ter negado vacinas, dado cloroquina e considerado o vírus uma gripezinha.
Imaginem agora se o presidente Cloroquina cumpre a palavra (embora não seja esse o seu forte) e indica André Mendonça, o defensor e aplicador da Lei de Segurança Nacional da Ditadura, que confunde piada francesa com ameaça de guilhotina, mesmo se esse objeto enorme e pesado não existe no Brasil!
Porém, André Mendonça está nos roubando espaço — nosso tema é mais amplo: não se deve colocar evangélico pastor ou metido a pastor no STF porque isso representaria um tremendo retrocesso. O juiz evangélico do Supremo iria decidir os pleitos com base na sua crença ou foro íntimo calcado na Bíblia, no seu conservadorismo, no seu arcaísmo, versão Silas Malafaia ou Edir Macedo. Ou seja, onde a lei no Código Civil ou Penal entre em conflito com a lei evangélica, aplica-se a lei de Deus.
Já temos um ministro da Educação, interessado em desmontar nossa estrutura educacional básica laica. Os exemplos de outros países teocráticos ou dirigidos pelos dogmas da religião nos mostram onde podem nos levar o dogmatismo, o autoritarismo, o obscurantismo refletidos na condenação da cultura laica ou profana. Cada cidadão pode ter sua religião ou não ter nenhuma, isso faz parte da democracia. Porém, se os evangélicos querem ter poder político, inclusive no STF, devem se organizar como partido político, disputar eleições, divulgar como será seu programa social, econômico e de saúde para toda a comunidade e não só para seus seguidores.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.