Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A tragédia em Manaus e a reação do jornalismo

(Foto: Márcio James/Amazônia Real)

No ano de 2020, sem dúvida, houve uma reação do jornalismo no Brasil. Como lembra o professor Rogério Christofoletti, em O ano em que o jornalismo reagiu , diante das investidas do atual governo em desqualificá-lo, ” em alguns momentos até querendo comprometer a sua sobrevivência financeira”, o jornalismo reagiu de forma profissional e vigorosa. Rogério destaca ainda que, quanto ao profissionalismo, foram produzidas reportagens investigativas que trouxeram à tona o aparelhamento político de instituições, além de escândalos e corrupção envolvendo, de forma direta ou indireta,membros da família Bolsonaro, seus amigos e inclusive contratados.
Segundo Christofoletti, a partir do acompanhamento sistemático, traduzidos em relatórios de ONG’s, de entidades classistas e de reportagens denunciando de modo veemente as agressões a profissionais da imprensa, a mídia revelou um vigor incontestável.

Tendo como ponto de partida essa reflexão sobre a postura do jornalismo no contexto atual de pandemia e de conturbado cenário político no Brasil, destaco aqui dois relatos publicados na mídia independente. Textos com abordagens humanizadas e informações relevantes sobre os efeitos da Covid-19 no estado do Amazonas.

O primeiro é a matéria do Brasil de fato, de 16 de janeiro, Repórter narra luta de meses contra a Covid em Manaus, de João Bosco Cyrino. Nela, o autor dedica espaço para, de forma humanizada, contextualizada e interpretativa, retratar a dor dos que perderam parentes e amigos asfixiados por falta de oxigênio nos hospitais. Após o subtítulo ” Como as mortes por falta de oxigênio em UTIs trouxeram indiferença e sofrimento aos moradores da capital do Amazonas”, João Bosco salienta que em Manaus a Covid-19 não é mais uma doença, mas o cotidiano, já que essa tragédia humana deixou de ser notícia, se tornando rotina ” que tira meses de vida de quem é contaminado enquanto ataca todos ao seu redor num ciclo vicioso que, quando parece que acabará, recomeça.”

Outro mérito do texto está na escolha dos personagens, como a assistente social Beatriz de Souza, que ressalta : “Não foram vidas perdidas, mas encurtadas por esse vírus, encurtadas por incompetência das lideranças e falta de empatia com o próximo por parte da população”.

Outra personagem é a professora do Instituto Federal do Amazonas, Ana Claudia de Souza, que lembra: “Não ter feito o isolamento na segunda quinzena de dezembro nos levou à situação de hoje enterrarmos colegas jovens e saudáveis, de pais enterrando filhos. Isso não era para ter acontecido.”

Além da adequada seleção dos personagens, o autor afirma que uma das piores consequências da tragédia coletiva em Manaus foi a banalização do sofrimento individual. E, mais do que isso, amplificando o aspecto humano do texto, usa a primeira pessoa para relatar suas experiências de dor e angústia advindas da Covid-19: ” Desde contaminado e com falta de ar, esperar horas para internar a mãe e o avô na UTI enquanto uma dúzia de parentes e amigos testavam positivo para covid. E, menos de um mês depois, ainda com a mãe a se recuperar das sequelas, sepultar o avô, que faleceu aos 78 anos por complicações causadas pela Covid-19. Antes mesmo de pegar as cinzas do morto — quando o ciclo de dor finalmente parecia cessar — ser informado que o outro avô também está contaminado pelo vírus e precisa de apoio.”

Com um texto que, por se afastar do relato engessado, burocrático, se aproxima do que deve ser uma reportagem, trazendo aprofundamento e interpretação dos fatos, o autor não teme lançar mão do recurso da primeira pessoa, como visto. Sim, João Bosco, desse modo, mostra a citada reação do jornalismo diante de campanhas negacionistas quanto à vacinação. Reação da mídia diante de um plano de vacinação tardio e mal organizado. Assim, Brasil de Fato leva ao leitor um relato que o aproxima, de forma mais contundente, da realidade cruel dos fatos ligados aos mais perversos efeitos da pandemia .

O segundo destaque na cobertura da tragédia que acontece em Manaus é a reportagem Como o caos de Manaus expõe presidente e autoridades locais, de Guilherme Henrique, veiculada pelo Nexo no dia 15 de janeiro.

Depois de relatar o agravamento da Covid-19 em Manaus, que “ganhou contornos dramáticos com o fim dos cilindros de oxigênio nos hospitais” , o autor, remetendo à atuação de autoridades locais, ressalta que ” mesmo após após o primeiro colapso da saúde no estado, ocorrido em 2020, a secretaria de Saúde do Amazonas desativou 85% dos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do SUS (Sistema Único de Saúde), criados entre fevereiro e julho para oferecer tratamento contra a Covid-19”. Ainda sobre a citada atuação das autoridades — e a partir de uma reconstituição cronológica — o texto lembra, entre outros fatos, que a gestão do governador Wilson Lima (PSC) enfrentou suspeitas de superfaturamento referentes à compra de 28 respiradores para utilização no contexto da Pandemia.

Trazendo detalhes da postura das autoridades, inclusive do presidente Jair Bolsonaro, o jornalista salienta que o governador, que havia decretado no dia 23 de dezembro o fechamento do comércio não essencial por 15 dias, recuou no dia 27 do mesmo mês, após manifestação de comerciantes e empresários. E destaca: ” Parlamentares bolsonaristas, como as deputadas federais Carla Zambelli (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF), comemoraram nas redes sociais o recuo do governador. ‘ Parabéns, povo amazonense, vocês fizeram valer seu poder’, afirmou Kicis em sua página no Twitter, num discurso contrário ao isolamento social também adotado pelo Palácio do Planalto.”

Especificamente quanto ao desempenho do executivo, o autor afirma que o ministro Pazuello foi a Manaus no dia 11 de janeiro e acrescenta: “De acordo com Igor da Silva Spindola, procurador da República no Amazonas, o ministro e seus subordinados foram avisados sobre a falta de oxigênio no mesmo dia, mas não tomaram providências. A declaração foi dada à revista Época”.

Dessa forma, com dados apresentados de forma minuciosa e cronológica, o texto, assim como o relato do Brasil de fato, mostra um jornalismo interpretativo, analítico, com apuração rigorosa.

Ainda quanto às atitudes e declarações do presidente, a matéria do Nexo lembra que “um dia depois, Bolsonaro atribuiu a crise no Amazonas à falta do tratamento precoce com os remédios ineficazes contra a Covid-19, uma agenda anticientífica que vem adotando desde o início da pandemia que já matou mais de 208 mil brasileiros.”

Após relatar as pressões do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Amazonas, da Defensoria Pública da União, da Defensoria do Amazonas e do Ministério Público de Contas por ação federal, o autor traz para o leitor falas de autoridades no assunto: José Vicente Mendonça, professor de direito da Uerj; Rafael Mafei, professor de direito da USP, e Carlos Ari Sundfeld, também professor de direito da FGV- SP. Este último ressaltou: “Está claro que Bolsonaro está sabotando as medidas restritivas e as ações para conter a pandemia. Isso pode ser punido politicamente [por crimes de responsabilidade que levam ao impeachment]. Mas a correlação para que ele e outros políticos possam ser enquadrados pelo cometimento de um crime comum é mais complexa”.

Por fim, além da feliz escolha dos personagens, o texto chama a atenção para a pressão de adversários pelo impeachment do presidente, como o governador de São Paulo, João Doria; o ex apoiador de Bolsonaro, empresário João Amoêdo; e a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP), que já foi líder do governo.

Os dois textos trazidos para esse relato relativos à tragédia que vem acontecendo em Manaus, ambos da mídia independente, atestam que o jornalismo vem adotando uma postura, que transparece nas narrativas de inúmeros veículos das diferentes mídias, mais analítica, contextualizada, embora primordialmente reativa diante dos ataques do governo federal à imprensa. Convém frisar, contudo, que tal posicionamento também pode ser detectado na mídia hegemônica, mesmo que a motivação, nesse caso, não seja apenas uma reação às agressões sofridas pelos profissionais na cobertura dos fatos ligados ao atual governo. Aqui, consideramos a estreita relação, de amor ou de ódio, que a grande mídia sempre teve com o poder.

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Ivana Barreto é jornalista e coordenadora do Observatório de Mídia do Curso de Jornalismo da UFRRJ, onde também é professora.