A América Latina, em 1º de janeiro de 2021, é um subcontinente desconstruído, paralisado por fraturas internas a cada país e por disputas antagônicas interestatais. A Covid-19 veio e avivou as feridas abertas há um bom tempo.
Caída em cheio nesse caldeirão de cultura, a Covid-19 degradou ainda mais uma situação que já estava bem complicada. A América Latina é, sem dúvida, uma das regiões do mundo com a pior reação a um desafio sanitário que ultrapassou a capacidade de resposta das sociedades e dos governos. Brasil, México, Argentina, Peru, Colômbia, Chile e Equador estão no topo da lista de países mais afetados pela crise sanitária e por suas consequências econômicas e sociais. Basta ler os indicadores: o número de vítimas fatais está entre os mais elevados, a taxa de desemprego está aumentando, a informalidade progrediu assim como a pobreza, o crescimento diminuiu assim como o consumo interno e as exportações.
Com os estados desestruturados, o que já vinha em um fluxo político tenso desandou mais ainda para uma convivência ainda mais precária de seus povos. Por falta de capacidade e de vontade política para responder aos desafios colocados pela crise econômica e social, preexistente à pandemia, que as agravou, as democracias estão em apuros. Na melhor das hipóteses, os eleitores sancionam os governos que saem. Cada vez mais parte deles toma as ruas, como vimos no Chile, na Colômbia, no Equador no final de 2019 e, mais recentemente, na Guatemala e no Peru. Cada vez mais eles pegam a estrada para buscar a salvação pessoal no exterior, como os migrantes da América Central e da Venezuela que, aos milhares, abandonam suas casas. Mais grave ainda, alguns dirigentes já não hesitam em manipular a ordem institucional, de modo a bloquear as formas de alternância possíveis e evitar ter de prestar contas de seus atos. O fenômeno é universal e abarca tanto os presidentes ditos de direita, no Brasil, na Colômbia, na Guatemala e em El Salvador, quanto os classificados de esquerda como na Nicarágua e na Venezuela.
O contexto internacional não permitiu, até agora, conter estes desvios. Muito ao contrário. Movidos pelas ânsias, mais do que pelas convicções cívicas, os dirigentes conservadores dessa região constituíram em 2017, uma espécie de “Santa Aliança”, o Grupo de Lima. Essa rede coletiva de certezas ultraliberais, coaliza todos os seus esforços com o objetivo de reduzir a perpetuação dos governos mais identificados com a importância do papel regulador do Estado. A Venezuela, principal país alvo desse grupo, reagiu jogando segundo suas mesmas regras e medidas. Bloqueou todas as alternativas de alternância, politizando a justiça, modificando o código eleitoral, dando o poder legislativo a uma Câmara submissa e impondo-se à Assembleia Nacional opositora, eleita em 2015.
Cada um dos campos procurou padrinhos externos poderosos. O Grupo de Lima foi abençoado por um presidente dos Estados Unidos decidido a assumir o controle da América Latina a qualquer preço e sem nenhum entrave ético. Ele usou, sem rodeios, a força comercial, econômica e financeira de seu país. Investidos de um discurso diabolizante de seu adversário, chamado de comunista, chavista, castro-chavista, socialista e, às vezes, por mais de um desses qualificativos associados, esses presidentes do grupo, sob os auspícios de Trump, empregaram enunciados que, ao evocarem esses termos, encontrariam neles seu valor de argumento.
Assim, Trump conduziu o concerto das nações conservadoras latino-americanas com vistas ao ataque ao vizinho venezuelano, que apelaram à revolta de generais venezuelanos, enrijeceram o controle das fronteiras com a Venezuela, reconheceram como chefe de Estado da Venezuela uma figura democraticamente duvidosa, Juan Guaidó, e desmontaram o quadro diplomático multilateral, da CELAC¹ à UNASUR². Tudo isso encorajados pelos Estados Unidos que deram o tom ao concerto, apoiados por um coro europeu – Alemanha, Espanha, França, Reino Unido – que aceitaram seguir a partitura orquestrada pela Casa Branca. Caracas e Havana reagiram voltando-se para os rivais globais, tecnológicos e comerciais dos Estados Unidos, a China e a Rússia. Cuba, Nicarágua e, sobretudo, a Venezuela se viram em uma nova dialética dos blocos, assumindo ao longo dos meses compromissos energéticos, econômicos, financeiros, tecnológicos e por vezes militares, com Moscou e Pequim, recompondo um braço de ferro da antiga moda “Leste-Oeste”, o que dessa vez, ao contrário dos anos 1950-1980, lhes foi mais inevitável do que desejado.
Essas derivas, que têm ameaçado a ordem democrática e a coexistência pacífica interamericana, embora preocupantes, não são irremediáveis ou inelutáveis ou contra as quais não se possa insurgir. O fim do reinado rocambolesco do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que brincou irresponsavelmente com as regras democráticas, pode agora desbloquear a via para um convívio, ainda marcado por suas fraturas, tanto aquelas no interior desses países como aquelas sofridas entre eles, mutuamente. Os anos Obama tinham permitido ir nessa direção. Joe Biden, novo primeiro magistrado dos Estados Unidos, era então seu vice-presidente. Basta lembrar a normalização das relações entre Washington e Havana, o apoio de Barack Obama às negociações de paz entre as autoridades colombianas e as FARC³, além da nova colegialidade no seio da OEA⁴.
As linhas diplomáticas se movem. A Europa se distanciou de Washington. Apesar das ambiguidades do presidente francês, que se exprimia em inglês diante de uma bandeira dos Estados Unidos para condenar as derivas iliberais de Donald Trump, os europeus com Angela Merkel, afirmaram suas diferenças. Juan Guaidó não é mais reconhecido como presidente da Venezuela. Na América Latina, os novos governantes da Argentina, da Bolívia e do México suspenderam toda participação significativa nas atividades do Grupo de Lima. O presidente mexicano lembrou a necessidade de se restituir o sentido de outrora, efetivo, firme, contra a ingerência de vizinhos e em nome do respeito das soberanias, condições essenciais para consolidar os princípios da paz coletiva e da democracia.
Esse novo contexto que se desenha, que retira as Américas desse cenário de intolerâncias cruzadas, pode apaziguar as relações entre os países e restituir a prioridade necessária de conter as “pragas” estruturais tal como descritas por Pierre Salama⁵, nestes tempos sucessivos de crise econômica e de crise sanitária. A nova rota a seguir pelos governantes já foi há algum tempo pensada por vários observadores. Os argentinos, Mario Rapoport e María Cecilia Míguez, por exemplo, resumiram, em 2015, as linhas principais: “é necessário construir uma arquitetura […] nacional e regional fundada em princípios da arquitetura internacional, com maior independência econômica, com a recusa de hegemonias, com a não intervenção e com a resolução pacífica de suas diferenças, e no interior desses Estados, com a busca pela edificação de sociedades mais justas, combinando crescimento econômico com a melhor distribuição das riquezas, de modo a reforçar a democracia representativa”⁶.
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NOTAS
¹ Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos
² União das Nações Sul-americanas
³ Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
⁴ Organização dos Estados Americanos
⁵ Pierre Salama, “Contagion virale, Contagion économique, Risques politiques en Amérique latine” [Contágio viral, contágio econômico, riscos políticos na América Latina], Vulaines-sur-Seine, Ed. du Croquant, 2020, p 10. N.T. Sobre este tema, conferir artigo do autor traduzido em português e disponível em: http://www.cadernosdodesenvolvimento.org.br/ojs-2.4.8/index.php/cdes/article/view/533/pdf
⁶ Mario Rapoport, Maria Cecilia Miguez, “Desafios y ejes para una inserción internacional autonoma de la Argentina y América del Sur en el escenario mundial”, In: José Briceño Ruiz, Alejandro Smimonoff, “Integración y Cooperación Regional en América Latina”. Buenos Aires: Biblos, 2015. p. 143-162
Texto publicado originalmente em francês, em 13 de Janeiro de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, com sede em Paris, com o título original “Amériques latines 2021: Recomposer un vivre ensemble écorné”. Tradução de Pâmela Rosin, Luzmara Curcino e Pedro Varoni.
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Jean-Jacques KOURLIANDSKY é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da imprensa em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar.