Gradualmente, estamos começando a descobrir que a Covid 19 é mais do que uma doença que já matou em um ano 2,8 milhões de pessoas, o dobro das vidas perdidas nos 20 anos da guerra do Vietnã. A pandemia já é hoje um fenômeno social porque suas causas e consequências ultrapassaram o campo da medicina e da biologia para afetar questões econômicas, políticas e comportamentais.
Não é mais possível pensar em combater o avanço da mortalidade no mundo inteiro sem levar em conta que o vírus só produz os efeitos letais que nos assustam porque encontra condições socioeconômicas favoráveis à sua reprodução e modificação. São ambientes como os criados pela enorme densidade populacional das cidades contemporâneas, pelo crescimento da desnutrição, falta de saneamento e pela intensificação dos contatos interpessoais resultantes da globalização econômica.
Cidades cada vez mais povoadas, favelas apinhadas de gente, urbanização acelerada e anárquica fazem com que as pessoas estejam sempre muito próximas entre si e é disto que o vírus se aproveita para passar de um indivíduo para outro, porque se transmite por gotículas expelidas por quem está doente, mesmo assintomático. Quanto maior a aglomeração humana mais intensa a contaminação. E quando aumenta o volume de vírus em circulação, maior é a possibilidade deles se recombinarem dando origem a variantes mais resistentes às vacinas existentes.
Quando a sociedade moderna estimula a migração para as cidades gerando o aumento da densidade populacional em espaços metropolitanos, ela oferece aos vírus que circulam em nosso meio ambiente, a possibilidade de encontrarem maior quantidade de hospedeiros e, consequentemente, mais alternativas de recombinação. É claro que num ambiente como este, a lei da seleção natural acaba permitindo que os vírus mais resistentes, aqueles que sobrevivem aos remédios e vacinas, acabem se tornando mais perigosos.
A inevitabilidade de novas mutações nos coloca numa corrida diabólica para imunizar o maior número possível de seres humanos antes que o vírus tenha tempo de gerar novas variantes resistentes às vacinas disponíveis. Não adianta imunizar todo um país se os seus vizinhos não forem também vacinados porque o vírus não respeita fronteiras territoriais e nem classes sociais. Isto nos obriga a ter que pensar também noutros fronts de combate à pandemia.
A ciência nos diz que, mesmo causando pandemias e mortandades, os vírus são essenciais para a manutenção da vida no planeta. É impossível eliminá-los conforme garante o epidemiologista norte-americano Tony Goldberg, em entrevista à TV britânica, porque, segundo ele, a humanidade inteira desapareceria num dia e meio. Todas as reações químicas que nos mantêm vivos só ocorrem com a participação de algum tipo de vírus. A questão é manter o equilíbrio biológico que garantiu a nossa sobrevivência até agora e que está ameaçado por fenômenos como a concentração urbana desenfreada e a destruição ambiental.
O tamanho do desafio
A dinâmica mortífera do Coronavírus, responsável pela letalidade recorde da Covid, coloca nossos gestores políticos, sociais e econômicos diante do desafio de ampliar a estratégia de combate a uma pandemia para outras áreas do conhecimento humano além das ciências da saúde, como a economia, sociologia, política, comunicação e psicologia, por exemplo.
O dilema é relativamente simples de expressar em palavras: curar ou prevenir, mas ultra complexo na hora de resolvê-lo. No ritmo atual de contaminação, apenas os países ricos dispõem de dinheiro suficiente para atender à demanda doméstica de leitos hospitalares e de vacinas capazes de controlar a reprodução do vírus. A esmagadora maioria de países pobres e até nações semidesenvolvidas, como o Brasil, terão muita dificuldade para participar da corrida da vacinação, o que os coloca diante da possibilidade de acabarem se transformando em “criadouros” de novas variantes.
Isto torna questionáveis os resultados de uma opção preferencial pela construção de hospitais, compra de equipamentos, contratação de pessoal médico e produção de vacinas. Se os resultados clínicos da ofensiva contra a Covid são incertos, o mesmo acontece com os seus custos econômicos. A badalada economista italiana Mariana Mazzucato já perguntou o que faremos com os milhões de leitos e respiradores instalados para atender às vítimas da Covid quando o ritmo da pandemia diminuir.
À medida que a complexidade do combate ao Coronavírus torna-se mais clara para a opinião pública mundial, começa a ganhar corpo a tese do tratamento preventivo das pandemias, o que significa atacar os problemas que aceleram a reprodução e mutações entre o nonilhão (um número com 30 zeros) de vírus individuais existentes no planeta, segundo cálculo feito em 2020 , pela revista norte-americana National Geographic.
Entre os problemas, os maiores são a concentração urbana e a pobreza, responsáveis pela superpopulação em metrópoles e pela formação de favelas, o que inevitavelmente mexem com o modelo econômico vigente que favorece a formação de megalópoles e a ampliação da desigualdade de renda. Por isto, a tendência à alteração das condições que criam o ambiente para a proliferação do vírus enfrenta ainda fortes resistências nos meios empresariais porque implica a mudança de todo um modelo econômico e corporativo.
O papel do jornalismo
Uma eventual reversão da cultura concentradora e descontrolada na sociedade contemporânea implica a adoção de novos hábitos, regras e valores no comportamento humano. Isto só é alcançável por meio da informação e do conhecimento. E é aí que fica claro o papel transcendente da comunicação no enfrentamento de mortandades como a que está sendo causada pela Covid 19.
Grandes mobilizações mundiais realizadas no passado contra enfermidades como paralisia infantil, AIDs, tuberculose, dengue e febre amarela, por exemplo, incluíram estratégias de comunicação como um item obrigatório e indispensável. O jornalismo é um componente obrigatório nas campanhas visando a introdução de novos comportamentos, normas e valores porque é por meio das notícias que a maioria esmagadora das pessoas é levada a refletir e discutir sobre um problema de saúde.
Para que haja adesão popular é necessário criar um fluxo permanente de informações e uma interatividade constante entre quem fornece e quem recebe dados, fatos e eventos relacionados à prevenção da pandemia. As iniciativas deflagradas até agora, aqui no Brasil, se preocupam mais com o marketing político/eleitoral do que com a identificação das condições materiais e comportamentais que impedem ou dificultam o distanciamento social, por exemplo.
Sem uma perspectiva social das causas e consequências da Covid- 19, é impossível dar respostas a perguntas como essas: Como pode a vacinação concorrer com a velocidade de contaminação entre os passageiros de ônibus ou nos trens superlotados? Como se pode cobrar distanciamento social num casebre onde moram famílias de até seis pessoas em um único quarto?
Publicado originalmente na plataforma Medium
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.