O atípico ano de 2020, causado pela Pandemia de Covid-19, trouxe adaptações importantes em relação ao cenário de digitalização das diferentes esferas e níveis de poder no Estado brasileiro.
Milhares de servidores públicos passaram a atuar em regimes totais ou parciais de trabalho à distância, diferentes instâncias de atendimento presencial aos cidadãos foram transferidas para a internet – incluindo aí o acesso a serviços médicos como consultas e receitas – e até mesmo sessões deliberativas das Casas Legislativas foram realizadas em modalidades online.
Nesse sentido, é interessante refletir não apenas sobre a extensão da digitalização das atividades públicas nesse período, mas também sobre a qualidade da mudança que estamos presenciando. Trata-se, afinal, de uma transformação estrutural das instituições políticas no sentido de promover uma maior abertura e transparência das instituições, seu funcionamento, processos, etc., ou apenas uma adaptação conjuntural em meio à necessidade de isolamento social?
Talvez seja prematuro responder a essa questão antes da situação emergencial causada pela Covid-19 efetivamente terminar. De qualquer forma, é interessante questionar se os processos de digitalização acentuados ou colocados em marcha no ano passado têm potencial de estabelecer novos padrões de atuação no serviço público, sobretudo se considerarmos os possíveis ganhos, tanto à democracia quanto à esfera da cidadania, que a transferência do presencial ao online podem gerar.
Os levantamentos sobre as novas ferramentas de comunicação e interação com os cidadãos criadas por governos ao longo de 2020 ainda estão sendo feitos. Porém, uma percepção geral começa a transparecer: vários serviços presenciais prestados por prefeituras e governos estaduais foram transformados em plataformas digitais, como a possibilidade de justificativa eleitoral pelo aplicativo e-Título, do TSE, ou o recadastramento do Cartão SUS pela Prefeitura de Salvador, por exemplo.
No âmbito da União, onde a digitalização já tem sido estruturada nas duas últimas décadas com mais intensidade, a grande questão tem a ver com atividades eminentemente presenciais – tais como aulas ou consultas médicas – que passaram a ser realizadas também em formato digital.
A grande questão aqui, que não tem sido debatida com suficiente intensidade nas instâncias institucionais, em nossa opinião, é a indisponibilidade de infraestrutura de acesso às ferramentas digitais para boa parte da população brasileira.
Além do custo dos serviços de telefonia e de acesso à tecnologia, acreditamos que as questões geracionais e cognitivas, que também influenciam o uso que os cidadãos fazem dos recursos disponibilizados pelo Estado, estão sendo desconsideradas. Especialmente nos pequenos municípios do interior do país e nas comunidades mais pobres das grandes cidades.
Trabalho remoto
No atual contexto pandêmico, chama a atenção um aspecto específico da digitalização do serviço público que aconteceu no último ano: a adoção do trabalho remoto para os servidores de quase todas as instâncias do Judiciário e boa parte dos órgãos, empresas públicas e casas legislativas. Nesse sentido, além da óbvia economia de recursos para o Estado – menos gastos com água, luz, internet, horas-extras ou café, por exemplo –, a situação precisa ser debatida em termos de constrangimentos e oportunidades para melhorias dos serviços prestados.
Como em todas as demais esferas da atividade econômica, o trabalho em sistema de home-office, isto é, no ambiente doméstico, é cheio de complexidades. Durante a pandemia os problemas foram agravados pela sobrecarga de trabalho, especialmente para as mulheres, encarregadas, na maioria das famílias, dos cuidados com as crianças fora da escola e dos idosos, e também pelo estresse gerado pelo isolamento.
Em termos de recursos físicos para sua realização – bons equipamentos, bom acesso à internet, ambiente adequado – o trabalho remoto cria dificuldades para a maioria dos trabalhadores brasileiros, mesmo os servidores públicos. Seja porque os salários não comportam o aumento de despesas trazido pela realização das atividades em casa – caso da maioria dos professores da rede pública de ensino –, seja porque a própria moradia não tem instalações propícias para a concentração do trabalhador nas tarefas.
Sob a desculpa de que a situação da pandemia é temporária – apesar de já ter completado um ano e sem perspectivas de resolução no curto prazo – não houve um debate aprofundado, na maioria das instituições, sobre as possibilidades criadas pelo trabalho remoto para ampliação do alcance dos serviços ou para a qualificação das condições de trabalho dos servidores que optarem por essa modalidade.
Sessões deliberativas
No caso do Poder Legislativo, a digitalização tornou-se ainda mais visível quando as sessões deliberativas dos plenários de Câmara dos Deputados, Senado, assembleias legislativas e várias câmaras municipais passaram a ser realizadas à distância. Saliente-se o pioneirismo das casas legislativas brasileiras nesse sentido, que não paralisaram suas atividades em 2020, ao contrário do ocorrido em várias nações.
Nesse sentido, diferentes plataformas foram disponibilizadas para a comunicação entre assessores e parlamentares, e também entre cidadãos e parlamentares. Para além disso, até mesmo a votação das matérias passou a ser realizada por meio de aplicativos e soluções próprias das instituições, em vários casos.
A intensificação do uso das mídias sociais pelos parlamentares como forma de comunicação e interação com a sociedade civil organizada e com os cidadãos, aliás, é um dos aspectos interessantes desse processo. Lives, podcasts e stories tornaram-se formas cotidianas de comunicação política e de interação com os públicos-alvo.
Se o fechamento físico das casas legislativas dificultou o trabalho de lobby para as organizações sociais, conforme várias análises já demonstram, muitos cidadãos se encontram mais próximos de seus representantes por meio das redes. O impacto dessa proximidade sobre as decisões legislativas, contudo, ainda está longe de ser claro.
No início de 2021, muitas casas legislativas retomaram as atividades presenciais em um modelo híbrido, destinado a preservar a saúde dos parlamentares idosos ou em situação de risco. Algumas permanecem nesse modelo, enquanto outras precisaram retomar as sessões remotas por conta da nova onda da pandemia.
É provável que essas formas híbridas ganhem destaque a partir de agora, uma vez que as negociações face a face continuam essenciais para a realização da política, na opinião de muitos atores políticos. Porém, o alcance das sessões e audiências públicas remotas pode ser útil em países continentais como o Brasil, e não apenas em termos de economia de recursos, mas também de alcance de públicos e diversidade de participantes.
Considerações finais
É importante questionar, portanto, se a digitalização enfrentada pelas instituições públicas brasileiras em 2020 — considerando todas as nuances relacionadas ao processo — tem promovido maior abertura do parlamento e do governo aos cidadãos, se houve aumento da possibilidade de escrutínio público, e se as instituições, seus processos, atividades e atores têm se tornado, enfim, mais transparentes, e os cidadãos mais participativos.
Sabemos que a transparência não é apenas tornar digitalmente disponível a informação sobre as decisões públicas, mas envolve o provimento de informações inteligíveis e de interesse público, que auxiliem o cidadão no monitoramento e fiscalização das atividades políticas e seus respectivos atores.
A transparência do legislativo e do executivo, por exemplo, pode acontecer em dois tempos: ao passo que leis, projetos e requerimentos podem e devem estar acessíveis na internet para serem visualizados pelos cidadãos a qualquer tempo – bem como os gastos do governo para as devidas prestações de contas -, o ambiente online possibilita o acompanhamento em tempo real da elaboração de projetos e tomada de decisões. Resta saber se no contexto pandêmico o digital tem sido utilizado para este fim, promovendo transparência e participação.
O que se pode depreender é que a pandemia impôs à administração pública – não apenas governo e parlamento, como também outras esferas do setor público – os mais diversos desafios, tanto para prestação do serviço público de qualidade quanto para produção da transparência e abertura de dados no ambiente online. A qualidade das condições de trabalho dos servidores, a capacitação desses servidores, bem como a infraestrutura tecnológica e de pessoal necessárias, são exemplos.
O modo como a administração pública irá lidar, a partir de agora, com os desafios impostos é que irá determinar se as mudanças causadas pela pandemia na digitalização do serviço público são apenas uma adequação conjuntural ou representam uma mudança estrutural das práticas e atuações das instituições políticas e de seus servidores.
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Cristiane Brum Bernardes é doutora em Ciência Política (2010) pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Mestra em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004), docente e pesquisadora do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados (CEFOR).
Maria Paula Almada é doutora e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA) na linha de comunicação e política. Graduada em Comunicação Social (jornalismo) pela mesma instituição e faz estágio de pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD).
São, respectivamente, coordenadora e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho “Governo e Parlamento Digital” da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).