Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Inspetor Mandetta na pista do capitão Cloroquina

(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

É uma pena o rebanho de seguidores do presidente ser formado de iletrados, ignorantes ou desprovidos de raciocínio. Senão, eu lhes proporia a leitura do livro do ex-ministro da Saúde, cuja capa preta, como o luto de tantas famílias, tem seu nome, Mandetta.

Escrito na primeira pessoa, lê-se como um policial ou thriller. Para manter o suspense da narrativa, o leitor deve fazer de conta não saber do desfecho no capítulo final. No mais, na história não faltam mortes, ciladas, perseguições, falsas pistas, mentiras e um vilão ou bandido, responsável pela propagação de um vírus assassino, cuja preferência são pessoas de baixa renda e imuno-deficitárias. O vírus é ajudado na sua missão pela indicação de um remédio miraculoso, na verdade inócuo e mesmo perigoso.

O livro do inspetor Mandetta não são memórias do período de quinze meses, no qual conviveu com o capitão Cloroquina, porém um relato dos meses nos quais a relação ministro-presidente foi conturbada pela chegada do coronavírus. Embora não diga, o objetivo do minucioso relato, passo a passo, diante da evolução da pandemia e de sua divergência com o capitão presidente, é uma defesa antecipada diante dos processos, que virão no futuro, contra os responsáveis pela má gestão e irresponsabilidade causadora de tantas mortes evitáveis no Brasil.

Não fora isso, imagina-se, o ministro teria encontrado um modus vivendi com o vaidoso e privatista presidente, ou será que, na hora de uma ameaça de privatização do SUS, Mandetta também teria se rebelado?

Ao aceitar sua indicação para a pasta da Saúde, antes ainda das eleições, no programa de um governo, cuja tônica principal seria a economia liberal, no qual se previam privatizações das grandes estatais e mesmo do sistema de previdência, Mandetta nutria ilusões em termos de proteção da saúde do povo? Quando em plena crise do coronavírus enfiava a blusa do SUS, será que não suspeitava do projeto do governo de privatizar a proteção da saúde no modelo americano ou mesmo suíço?

Teria havido ingenuidade ao aceitar comandar a Saúde, num futuro governo, no qual ficou depois evidente, a saúde do povo era sem importância e não era preocupação principal? Em todo caso, chegou felizmente o momento decisivo de uma opção, entre o desinteresse do governo e o risco vivido pelo povo. Mandetta recorreu ao seu pai, também médico, segundo o qual nunca se abandona o paciente. E tomou a boa decisão de afrontar o capitão Cloroquina, sem se importar com sua demissão.

Mas é verdade, se tivesse sido mais impetuoso na crise do capitão Cloroquina contra a Organização Mundial da Saúde, rompendo com a irresponsabilidade do presidente e denunciando sua ação criminosa, ainda no começo, (eram ainda mil mortes agora são quase 150 mil) talvez o impacto mundial tivesse provocado algum tipo de intervenção ou de processo internacional.

Ou talvez tivesse só provocado sua demissão, como acabou por acontecer. Porém, seu ato de rebeldia naquele momento dispensaria o livro, sua atual defesa, como médico, diante de um crime abominável, que nossa história irá julgar. Mandetta tinha consciência dessa responsabilidade perante a história, pois conta no livro ter alertado o capitão Cloroquina quanto a essa possibilidade futura.

O livro de Mandetta vai, portanto, além de um relato cru e contemporâneo de como o governo brasileiro permitiu, causou ou provocou inutilmente o sacrifício de uma parcela da população em nome da defesa da economia e do lucro. Justamente a parcela pobre, religiosamente submissa e sem instrução responsável pela eleição desse governo. O livro vai da gripezinha à resistência de Bolsonaro ao confinamento, ao desprezo pelas medidas de prevenção e proteção, e ao desinteresse demonstrado também pelo ministro Paulo Guedes quanto ao avanço da pandemia.

Mais que um thriller, esse livro do ex-ministro Mandetta é um documento vivo, um depoimento e um testemunho de um massacre coletivo ainda em execução, sem punição para seus autores.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.