Está circulando na mídia impressa e visual uma carta contendo a assinatura de 6400 cientistas e médicos. Ela pede que os governos do Reino Unidos e dos Estados Unidos estimulem a chamada imunidade de rebanho para conter o coronavírus. A ideia básica da carta — que pode ser achada aqui — é que se permita a circulação de jovens, ou seja, que se elimine o distanciamento social para que essa população pegue o coronavírus e adquira a chamada imunidade de rebanho fazendo a pandemia desaparecer mais rápido. Apenas os idosos e doentes seriam isolados. Os cientistas também defendem que o isolamento teria prejuízos na saúde pública. Supostamente a carta teria o aval de 6.400 cientistas e médicos de várias partes do mundo.
O interessante dessa carta é que ela conta com 3 signatários e a outros 35 co-signatários todos eles professores de universidades renomadas. A carta logo chegou no Brasil e foi bem recebida por aqueles setores, digamos assim, negacionistas, que rejeitam o isolamento social como forma de conter a pandemia. A mídia deu boa repercussão à carta. O Morning Show foi um dos primeiro veículos a comentá-la. Com o título: ” Dê uma olhada nessa carta de 6.400 cientistas e médicos, e responda: Adrilles tem razão? ” o vídeo já conta com quase 295.000 visualizações. O mais interessante é ler os comentários no vídeo. Todos eles, claro, elogiando a ideia da carta e com alguns dizendo que Bolsonaro tinha razão. Outro veículo diz: “6400 cientistas confirmam o que Bolsonaro e Osmar Terra já diziam: “LOCKDOWN produz efeitos devastadores”. Outro veículo visual declara: “Cientistas atacam confinamento e pedem imunidade de rebanho”. Os comentários do vídeo também são totalmente favoráveis à carta com ataques à Rede Globo, aos comunistas, aos globalistas e ao governo de São Paulo. Mas a grande mídia, mais respeitável, também noticiou. A Folha de São Paulo declarou, embora com viés mais neutro: “Mais de 6.000 cientistas defendem que jovens ‘retomem vida normal'”. O Globo “Covid-19: Contra OMS, grupo de cientistas pede isolamento só para idosos”, embora, se possa reconhecer, a reportagem de O Globo tenha chamado especialistas que contestaram a carta. Poderia colocar outras manchetes aqui, mas me alongaria muito. Resumindo: praticamente todos os veículos de comunicação brasileiros, em maior ou menor grau, dão valor à carta.
O mais interessante é que a carta não chamou a atenção da comunidade científica e médica local ou mundial até que um dos organizadores da carta foi chamado á Casa Branca e recebido por alguns assessores de Trump, que como se sabe, é um negacionista da gravidade do coronavírus. Aqui.
Bom, como acontece nesses casos, no Brasil foi um obscuro youtuber que contestou a veracidade da carta. Com um vídeo amador e citando fontes o vídeo pergunta se a carta seria falsa. Uma das fontes citadas no vídeo é o SkyNews que, através de uma pesquisa dos cientistas e médicos, aqueles 6.400, descobriu que praticamente todos eles não são cientistas e médicos de fato. Muitos dos que assinam a carta são homeopatas, terapeutas, incluindo massoterapeutas, hipnoterapeutas, psicoterapeutas e um cantor mongol Khöömii que se descreve como um “praticante de som terapêutico”. Muitos dos nomes inscritos na carta são falsos, incluindo até alguns como ‘Dr Johnny Bananas’ e ‘Dr Person Fakename’, em tradução livre: Doutor Joãozinho Bananas e Doutor Pessoa Nome Falso. O The Guardian também mostrou erros e falsidades na carta.
Resumindo. Não teve 6.400 cientistas e médicos assinando carta nenhuma defendendo a chamada imunidade de rebanho. A carta, que aceita a assinatura de qualquer um pela internet e não checa as credenciais, passa a falsa impressão de um racha na comunidade científica internacional sobre esse assunto. A carta conta com o apoio de apenas alguns poucos cientistas e médicos com alguma titulação, no máximo poucas dezenas que tentarem inflar a carta com assinaturas sem checagem. Não é portanto, uma carta séria. Não teve reconhecimento entre os pares, como se diz em ciência, e apenas ganhou proporções mundiais depois que a Casa Branca deu aval à carta.
O mais louco dessa história é que coube a um obscuro youtuber descobrir para o público brasileiro a triste realidade, trabalho que a imprensa errou em fazer.
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Pollyanna Duarte de Lima é jornalista.