Ameaça de guerra entre Estados Unidos e Irã. Coronavírus na China. Incêndio florestal na Austrália. Terremotos na Turquia e no Caribe. Cerveja contaminada em Minas Gerais. Secretário de Cultura plagiando discurso nazista. Milhares de desabrigados pelas enchentes na Região Sudeste. Realmente, 2020 não começou bem.
Janeiro, mês marcado por férias escolares e recesso parlamentar, geralmente tranquilo, sem grandes acontecimentos, no último ano da década, foi bastante “quente” (e nem tanto em relação às temperaturas). Mas o pior ainda estava por vir.
Para não soar pessimista, o início de 2020 também trouxe uma boa notícia: a indicação de “Democracia em Vertigem” ao Oscar de melhor documentário. Não levou a estatueta, mas mostrou ao mundo o golpe de Estado no Brasil em 2016.
Por falar em engajamento artístico, o grande premiado da edição de 2020 do Oscar foi o sul-coreano “Parasita”, filme que retrata os efeitos nefastos do neoliberalismo naquela nação asiática.
Infelizmente, o temível coronavírus (causador da doença conhecida como Covid-19) extrapolou as fronteiras chinesas e se espalhou pelo mundo. No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou “pandemia global”.
Estados Unidos, Reino Unido e Brasil estiveram entre os países mais afetados (por uma bizarra coincidência, três Estados governados pela extrema direita negacionista, anti-ciência e adepta às fake news).
Conforme apontou o repórter de saúde e ciência da BBC News Brasil James Gallagher, tratou-se de uma doença sem paralelos na história recente. O mundo fechou as portas. Lugares que antes ficavam cheios de gente tornaram-se cidades fantasmas, com enormes restrições impostas a nossas vidas: quarentenas, fechamentos de escolas, restrições de viagens e proibições de reuniões.
Lembrando a famosa Lei de Murphy, não poderia haver pior momento para a expansão do coronavírus. Décadas e mais décadas de ataques neoliberais geraram sistemas de saúde pública totalmente despreparados para enfrentar uma pandemia de tamanha proporção.
No Brasil, a Covid-19 encontrou um presidente que minimizava a gravidade da situação, mais preocupado em salvar CNPJs a CPFs. Na contramão da maioria dos líderes mundiais, Bolsonaro convocava seu exército de fanáticos seguidores para desrespeitarem a quarentena sugerida pelas autoridades de saúde como maneira de conter o avanço do coronavírus.
“A maior ameaça à resposta do Brasil ao Covid-19 é seu presidente, Jair Bolsonaro, mais empenhado em uma guerra contra a ciência do que contra o novo coronavírus”, apontou um editorial da revista científica britânica The Lancet. “Trata-se de um comportamento criminoso”, completou o editor da publicação, Richard Horton, em entrevista à Folha de São Paulo.
Como bem escreveu Matheus Pichonelli, no Yahoo Notícias, no período em que atravessamos a maior crise desse início de século, Bolsonaro não quis ser presidente, quis ser notícia. E conseguiu.
Já o astrólogo Olavo de Carvalho, “guru” da família Bolsonaro, foi mais longe. Para ele, a pandemia “simplesmente não existiu”. “Não há nenhum caso confirmado de morte por coronavírus no mundo. É a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana”, afirmou Olavo em uma transmissão ao vivo no YouTube.
O Brasil foi um caso único de flexibilização do isolamento social no auge da pandemia. Bares, restaurantes, academias e salões de beleza, entre outros setores considerados “não essenciais”, foram reabertos em vários municípios antes que fosse atingindo o pico de contaminações. Os resultados de tamanha irresponsabilidade: milhões de contaminados e centenas de milhares de mortos.
A quarentena mundial para evitar a propagação do coronavírus apresentou efeitos surpreendentes, jamais imagináveis por qualquer distopia.
A circulação do vírus provocou um fechamento generalizado e sem precedentes de instituições educacionais no mundo todo, afetando 1,3 bilhão de estudantes, o equivalente a 73% do total, segundo a Unesco.
Enquanto o homem esteve confinado, a natureza se renovou. A poluição na China diminuiu. Cantos de pássaros voltaram a ser ouvidos em Paris. Peixes voltaram aos canais de Veneza. No Brasil, animais puderam transitar livremente em parques que antes ficavam abarrotados de pessoas. O índice de lixo nas praias cariocas chegou a diminuir consideráveis 91%.
Conforme observaram cientistas estadunidenses, britânicos e belgas, por meio de sismógrafos, houve uma queda no ruído sísmico, o zumbido produzido pela vibração da crosta terrestre, cujo movimento sofre influência da atividade humana.
A cobertura da grande imprensa brasileira sobre a pandemia de Covid-19 variou de acordo com os interesses da elite e do grande capital.
Quando foram registrados os primeiros casos por aqui, no início do ano, pelas próprias características de um “vírus importado”, tratava-se, basicamente, de uma enfermidade que acometia indivíduos das classes média e alta. Em bom português: “era doença de rico”.
Na época, devido a inércia das autoridades públicas em lidar com o coronavírus, a solução (mais fácil) encontrada para evitar que elite e classe média fossem contaminadas foi o isolamento social. Somente as atividades consideradas “essenciais” continuaram normalmente. Desse modo, na mídia, predominava o discurso “fique em casa”.
A partir do momento em que o coronavírus deixou de ser “doença de rico”, começou a descer a pirâmide social (virando “doença de pobre”) e, como bem apontou o sociólogo Emir Sader, os grandes capitalistas “descobriram” que o sistema econômico vigente não sobrevive sem o consumo de supérfluos (os chamados “serviços não essenciais”), o “fique em casa” tornou-se insuficiente.
Por um desses paradoxos, que só a ganância financeira explica, enquanto cresciam vertiginosamente os casos de Covid-19, em todo o país, era promovida a abertura gradual da economia. Na mídia, foi preciso incentivar as pessoas a saírem de casa. Entrava em cena um novo discurso: o “use máscara”.
Porém, não bastava a abertura gradual, era preciso que todas as atividades econômicas, sem exceção, funcionassem a pleno valor.
Assim, a imprensa começou a diminuir a cobertura sobre a pandemia (gerando a falsa sensação de que os números de casos estavam diminuindo) e reportagens favoráveis ao retorno às aulas presenciais se multiplicaram nos principais noticiários do país. Surgia a narrativa do “novo normal”.
Além da pandemia, outras temáticas contempladas pelos noticiários internacionais no ano recém-terminado foram o assassinato de um homem negro (George Floyd) por um policial branco (Derek Chauvin), em Minneapolis, o que desencadeou uma série de protestos nos Estados Unidos; a grande explosão que atingiu Beirute, levantando bolas de fogo e colunas de fumaça gigantescas e afetando construções a quilômetros de distância; a tentativa (muito malsucedida) de realizar uma “Revolução Colorida” na Bielorrússia, a nova constituinte chinela, o impeachment do presidente peruano Martín Vizcarra sob a evasiva alegação de “incapacidade moral permanente”, a posse de Luis Alberto Arce na Bolívia, a volta do predomínio chavista no parlamento venezuelano e a eleição presidencial nos Estados Unidos, vencida pelo democrata Joe Biden.
Assim como no ano anterior, em 2020 integrantes do governo Bolsonaro e os familiares do presidente continuaram a protagonizar momentos inusitados e constrangedores.
No mês de maio, em entrevista à CNN Brasil, a então secretária nacional de Cultura Regina Duarte defendeu a censura. Ronaldinho Gaúcho, embaixador do Turismo, foi detido no Paraguai por portar passaporte falso. No auge do coronavírus se espalhando pelo mundo, o deputado Eduardo Bolsonaro culpou o governo chinês pela pandemia, comparando-a ao acidente nuclear de Chernobyl. Atitude semelhante foi tomada pelo ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. No dia 13 de maio, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, em vez de celebrar a luta do povo negro pela liberdade, homenageou a Princesa Isabel.
Não bastasse a pandemia, 2020 também não foi positivo para a liberdade de informação. Veículos da imprensa progressista — como Diário Causa Operária, Ponte Jornalismo e A Nova Democracia — e sites ligados a movimentos sindicais foram alvos de criminosos ataques hackers.
Os blogs “Nocaute”, do escritor e jornalista Fernando Morais, e “Conversa Afiada”, do saudoso Paulo Henrique Amorim, encerraram suas atividades. Já o portal GGN, do renomado jornalista Luís Nassif, foi censurado pela Justiça do Rio de Janeiro.
Outros acontecimentos que marcaram o ano no Brasil foram as queimadas na Amazônia e no Pantanal, a alta nos preços dos alimentos (com destaque para o arroz), a valorização do dólar, a crise energética no Amapá, as eleições municipais e o assassinato brutal de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças do Carrefour.
Em 2020, a cultura brasileira ficou sem o escritor Rubem Braga, o compositor Aldir Blanc, o jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello, os cantores Moraes Moreira e Paulinho (Roupa Nova) e os atores Flávio Migliaccio, Gésio Amaral, Chica Xavier e Nicette Bruno. O cenário musical global se despediu de Eddie Van Halen, Little Richards, Johnny Nash e Florian Schneider, um dos fundadores da revolucionária banda Kratfwerk. As telas de cinema não contarão mais com Sean Connery e as trilhas sonoras de Ennio Morricone.
No âmbito esportivo, com o adiamento da Olimpíada de Tóquio, a principal notícia foi negativa. O futebol perdeu o genial Diego Armando Maradona. “A imprensa mundial registrou uma notícia triste, de caráter histórico. Bastou dizer que Maradona morreu, de repente todos os fãs da genialidade dele e qualquer pessoa que saiba o que é uma bola de futebol, todos perceberam imediatamente a dimensão desse fato. Um dos astros mais brilhantes do universo dos esportes se apagou”, afirmou Renata Vasconcellos no Jornal Nacional. Foi-se o homem, nasceu a lenda.
Se, tradicionalmente, em nosso país, o ano só começa depois do carnaval; na prática 2020 foi um ano perdido, nem chegou a ter “início”. Exceto, é claro, para os chamados “negacionistas”, que, em meados do segundo semestre, decretaram, por conta própria, o fim da pandemia de Covid-19.
No entanto, eventos com grandes aglomerações permaneceram suspensos. O famoso Réveillon de Copacabana, maior festa de passagem de ano do mundo, por exemplo, foi cancelado. Como diz a letra de um clássico do Clube da Esquina: “sei que nada será como antes”. Sem exagero algum, podemos dizer que, se você sobreviveu a 2020, pode se considerar um ser humano afortunado.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre e doutorando em Geografia. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).