Em 2020, um vírus letal obrigou o capitalismo a ficar de joelhos. E num país materialista par excellence como a Alemanha, o capital decide sobre o reconhecimento social e todo o desdobramento disso. A dinâmica pouco previsível e muito menos controlável da pandemia resultou em brigas em frente às prateleiras de papel higiênico, lenços de cozinha e nas filas dos supermercados. A hora dos moralistas, dos donos da verdade, chegou e muitos alemães aguardaram ansiosamente esse momento para colocar em pauta sua legitimidade. É aí que mora o perigo.
O egoísmo e o medo se sobrepõem à lei do bom senso e à solidariedade. Em meu projeto “Betweeners”, em formato Live-Stream criado com meu colega polonês Marcin Antosiewicz, pautamos semanas atrás a pandemia do Covid19 e indagamos: “Quem oferece a melhor estratégia?”. Vitkoria Braxter, nascida em Gana e ativista dos Direitos Humanos em Berlim, delineou de forma simples e transparente que foi a solidariedade entre as pessoas que evitou que a África tivesse mais mortes pela pandemia. Na Alemanha, porém, a solidariedade tem um cunho político e se mostra especialmente rara quando o foco é a convivência no âmbito social.
Ratos e cobras vislumbraram terreno de bom adubo para suas convicções: os esotéricos, os nazistas, os hooligans, os membros da teoria da conspiração e os que se recusam a acreditar na soberania do Estado Alemão, se juntam na mesma passeata no movimento que tem sua matriz na cidade de Stuttgart; o movimento “Querdenker” (pensar atravessado) vem sendo para o Estado um desafio tão grande quanto os desdobramentos da pandemia.
Pautas em uníssono
Desde o início da segunda onda, que se manifestou na segunda metade do mês de outubro, é inflacionário o número de reportagens com donos de lojas, cafés e agentes culturais sempre exercitando a mesma linha discursiva: entrevistados se posicionam como vítimas das circunstâncias, como se houvesse outra opção.
O artigo do jornal berlinense Der Tagesspiegel veiculado em 13/12 é uma exceção no espectro midiático alemão. “A verdadeira tragédia do Covid-19 é que muitas pessoas teriam continuado a viver, não tivessem elas se infectado com o novo coronavírus”.
A pilastra mór da esmagadora maioria das pautas, sempre do mesmo cunho, é o prejuízo material, ou seja, a perda de dinheiro. Especialmente no setor gastronômico é bem-vindo o foco para lamentações sobre o quanto os donos dos restaurantes ou dos cafés investiram em infraestrutura para garantir a continuidade do funcionamento. Imagens mostram funcionários em cima de uma escada para instalar o filtro de ar. Nessa hora, ninguém se atreve lembrar que Berlim é a pior cidade no quesito prestação de serviços, especialmente no setor de gastronomia, que é o setor que apresenta menor percentual de flexibilidade.
Seguindo fiel à pautas sobre o capital e o prejuízo, o portal Spiegel Online veiculou uma matéria na qual cita o Instituto de Pesquisa de Mercado de Trabalho, na cidade de Nurembergue.
“Cada semana de Lockdown irá custar 3,5 bilhões de euros ou quatro décimos do PIB trimestral”, afirma Enzo Weber, do instituto que é acoplado à Agência de Trabalho (Bundesagentur für Arbeit). Quem se dá ao trabalho de ler até o final da matéria, verá que a economia parada dará despesas, mas que o cenário não é tão cinzento como se faz parecer na manchete do artigo.
“A economia continuará robusta”, mesmo com o dizimar de jobs de carga horária curta.
A linha retórica midiática não é focar no óbvio, que uma pandemia de desdobramento mundial custa dinheiro e jobs, mas que isso está acoplado a um cenário reversível, enquanto “esquecem” que a perda de entes queridos sim, é um processo irreversível. “A economia se conserta depois”, foram as sábias palavras do ex-presidente Lula no seu discurso em 07 de setembro.
Fracasso
Da perspectiva de hoje, é indiscutível que durante os meses do verão europeu, o governo Merkel fracassou em planejar a logística para o inverno, como comprar e implementar filtros de ar nas salas de aula das 20.000 escolas que existem no país. Até o dia 11/12, alunos tinham aulas em salas com janelas abertas e temperaturas por volta dos 5 graus Celsius. Para esses casos, a chanceler sugeriu fazer exercícios de agachamento do joelho ou “bater palmas”.
O governo não só falhou em aumentar a produção de máscaras de alta eficiência (FFP2) e distribuí-las gratuitamente em asilos e setor de saúde, como falhou também em disponibilizar testes instantâneos e gratuitos nas escolas e universidades. Essas três vertentes ocupam o segundo lugar no quesito lamento midiático.
Quase todos os virologistas/cientistas passaram a visão da vinda certa da segunda onda de contaminação. Alguns deles sofreram ameaças de morte e foram achincalhados nas redes sociais por pessoas que estão convencidas de que têm o direito à famigerada normalidade e que se dane o que acontece fora da sua bolha, do seu mundinho controlável, adestrado e previsível e que ainda a ficha não caiu para o Zeitgeist de um mundo que capotou.
O principal alvo de desafeto de “Negadores do Coronavírus” (Coronaleugner) foi Christian Dorsten, cientista do centro hospitalar e de pesquisas de renome internacional Charitè, em Berlim. Especialmente o tabloide Bild crucificava o cientista, criticava o resultado de suas pesquisas e tentava desacreditá-lo enquanto oferecia visibilidade para seus adversários do setor. A carreira midiática de um cientista-superstar para um “corta prazeres” se deu em velocidade Blitz.
Cenário de fim de mundo
“O Coronavírus fugiu do nosso controle”, declarou o Ministro Presidente da Baviera, Markus Söder, um ferrenho defensor de medidas mais restritivas devido ao número recorde de infecções na região da Baviera, mas também porque nutre ambições políticas em Berlim. Ele alegou a fronteira com a Áustria como motivo.
As regiões administrativas (ao todo, 16) tem independência em suas decisões, mas a ideia (com mais ou menos sucesso) era encontrar um denominador comum, com algumas poucas nuances dependendo do número de infectados em cada região, especialmente para conseguir maior aceitação da população.
A perda de controle da classe política e a possibilidade de administrar o prejuízo desconcerta e consterna os alemães, os colocam em permanente situação de estresse, enquanto a mídia foca no ponto mais crucial de todos: o capital. Falta também por parte da mídia que se denomina “independente” e “responsável” o olhar para o coletivo, o olhar além dos desafios que essa pandemia exige. De todos nós.
Com ombros virados para baixo, rouca, citando palavras intercaladas de uma tosse resistente, a chanceler Merkel lia o comunicado à imprensa na manhã de domingo (13). Seu semblante cansado, é “somente!” um índice de que seu “latim esgotou”, como ensina um ditado popular das terras daqui. Fechar o comércio 10 dias antes do Natal custará caro a pasta da economia, da qual o ministro é um fetichista do “Orçamento Zero”, ou seja, sem fazer dívidas.
Manter promessas também é uma forte pilastra na cultura alemã e sempre foi uma constante na longa carreira política de Angela Merkel. Na manhã de domingo (13), a chanceler teve que quebrar sua promessa de deixar as escolas de jardim de infância e escolas abertas. Essa era a prioridade mór.
Enquanto na primeira onda os pais se mostravam desesperados, sem saber onde deixar os filhos, os apelos durante a segunda onda reverberam nas redes sociais, a insatisfação pela obrigatoriedade da aula presencial. Uma usuária do Twitter, desabafou: “Meu filho está se arrumando para ir para escola e eu não sei em que estado ele voltará pra casa”.
De cabeça baixa, Merkel anunciou o fechamento das escolas.
A “Tática Salame”, como apelidou o jargão midiático as medidas em várias etapas e sem um denominador comum, foi extinta. De forma tardia como mostram as estatísticas. Se curvando às leis do capital, o governo foi relutante em demasiado para decretar o inevitável. O número de alemães fazendo uso da hashtag #Lockdown durante semanas, implorando à classe política, é mais um aspecto de um cenário surreal.
País dividido
Quem acha que essa pandemia trouxe à tona o melhor dos alemães, acredita em Papai Noel. O maior fator segregativo é entre os que acreditam que a pandemia e que o Covid-19 são mais do que uma gripezinha, e outrXs que se vêem tolhidos em seus direitos mais básicos ao serem obrigados a usar máscaras. A hashtag #Covidioten (Idiotas do Covid) exibe a segregação social, e as redes viraram um campo de batalha.
As passeatas contra os “defensores de direitos básicos” se alastraram tanto pelo país quanto o próprio vírus. Como balancear a manutenção de direitos prescritos pela constituição e evitar que cidadãos sejam um perigo para si e para a sociedade? Nesse quesito, a linha republicana fracassou. A justiça fez olhos grossos e continuou a permitir manifestação “com medidas restritivas” que nunca eram cumpridas. No fim do dia, a polícia acabava dissolvendo as aglomerações num jogo pérfido de gato e rato, onde todos só tinham a perder.
A linha desses protestos é a individualidade acima de tudo, de ir e vir quando quiser. Na noite de domingo, já na especulação sobre o cenário das lojas respectivamente na segunda e terça-feira, a hashtag liderando os tópicos na Alemanha foi #Baumarkt (Mercado de Construção). A paúra de homens terem que ficar em casa por quase um mês sem bater um martelo, fazer uma laje ou montar uma estante deixou o país em polvorosa, colado ao fetiche de sofrer por antecipação, por aquilo que não se pode controlar e pelas circunstâncias externas.
As prateleiras vazias de papel higiênico e lenços de cozinha serão a confirmação da paúra intrínseca nesse povo.
Emocionalidade merkeliana
No dia 09/12 o parlamento alemão teve o “Debate Geral” e mostrou uma chanceler apelando para que preservemos nossos avós durante essas festas de Natal para que possamos passar com eles o ano que vem. O discurso de Merkel foi regozijo para a imprensa. “Emocional”, foi rotulado seu discurso. O tom de espanto de comentaristas é para dar a pauta uma relevância que ela, de fato, não tem, só na forma, não no conteúdo. Quando Merkel expressa alguma emocionalidade, isso se torna assunto que desmembra intermináveis “análises” de âncoras da imprensa amarela. De fato, porém, o apelo de Merkel foi o desespero cru ao constatar que o Lockdown-Light não alcançou o objetivo determinado e no pior momento, poucos dias antes do Natal, a vida social será reduzida a um mínimo.
“Dói muito no meu coração. Que o número de mortos, diariamente chega a cifra de 590 por dia, nós não podemos aceitar”. (..) E quando os cientistas nos imploram para, uma semana antes do Natal, antes de estar com avôs, avós e pessoas da terceira idade, reduzir o contato. (…) Se mantermos contato demais antes do Natal e ele for o último com avôs e avós, nós teremos fracassado”. (0:35)
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.