A imagem da enfermeira Monica Calazans sendo vacinada em 17 de janeiro foi emocionante e simbólica. Trouxe alívio porque mostrou que a vacina era possível entre nós, e estabeleceu um novo marco no calendário da pandemia: o início da imunização em massa no país. Passadas algumas semanas, sabemos que esta fase é muito mais complexa, e o seu ritmo pode nublar parte da nossa esperança. Mesmo assim, não dá pra esquecer aqueles olhinhos sorrindo atrás dos óculos: era como se estivéssemos deixando o fatídico 2020 pra trás mesmo, fechando aquele capítulo terrível da história. Sim, porque – sejamos francos! – O Ano da Peste não terminou em 31 de dezembro, já que a impiedosa estatística e as notícias ruins não respeitaram a contagem convencional dos dias.
Quem chegou até aqui atravessou o primeiro ano da maior epidemia do nosso tempo, e isso é motivo de celebração. Mas vencer esse período nos permite também contabilizar o que aprendemos com o novo coronavírus. Governos e pessoas modificaram suas vidas e agendas; empresas e organizações precisaram se reinventar; políticos tiveram que se convencer de outras prioridades; profissionais de saúde colecionaram novos conhecimentos… Mas e os jornalistas, o que aprendemos com o primeiro ano da pandemia? Não foi pouco!
Não são só números
No início da pandemia, a explosão de casos da doença soou o alarme nas redações, que guiaram suas coberturas pelos números. Tabelas, artes e infográficos são úteis para o grande público porque facilitam a visualização de algo que está disperso, ainda mais num país tão grande como o Brasil. Contabilizar contágios, mortes e ocupação de leitos nos hospitais é importante, mas o interesse geral se dissipa rapidamente, pois as pessoas passam a esperar mais informações a partir das estatísticas. Algumas emissoras de TV mantêm uma rotina de mapas em seus telejornais com a evolução da doença nos estados e no país, mas foi preciso ir além. O Jornal Nacional, por exemplo, mergulhou em personagens da pandemia e criou iniciativas como o impactante quadro “Aqui Dentro”, com testemunhos de profissionais de saúde na linha de enfrentamento da Covid-19.
Jornais, revistas e sites seguiram a mesma trilha, oferecendo histórias que extrapolam a contabilidade macabra (mas necessária!) do dia-a-dia. Se o vírus é invisível e abstrato, reportagens focalizam pessoas de carne e osso para contar sobre seus sintomas, dramas, perdas e aprendizados. Repórteres de todas as partes foram às ruas tomar esses depoimentos, o que contribuiu para ampliar o entendimento geral sobre a nova doença e, de quebra, sensibilizou algumas parcelas mais céticas. Um exemplo despretensioso e muito ilustrativo desse potencial narrativo é Inumeráveis, site criado para ser um memorial das vítimas da Covid-19. A iniciativa reúne nome, idade e história das pessoas comuns que morreram por causa da doença. O site é alimentado com textos de parentes ou amigos enlutados, e todos os casos são apurados, editados e revisados por jornalistas voluntários.
Um dos primeiros aprendizados do jornalismo é que, por trás dos números da pandemia, sempre há pessoas, afetos e histórias interrompidas.
Contexto nunca é demais
Neste primeiro ano da pandemia, os podcasts se revelaram canais estratégicos para ampliar o conhecimento geral sobre a Covid-19. Grandes marcas do jornalismo dedicaram episódios temáticos nos podcasts já existentes, como foi o caso do Café da Manhã (Folha de S.Paulo), Estadão Notícias, Durma Com Essa (Nexo) e O Assunto (Globo). Mas houve quem criasse projetos calcados no jornalismo de interpretação, como foi o Luz no Fim da Quarentena. O podcast da revista piauí tem até um cientista residente, o professor da USP Fernando Reinach, que traduz assuntos complexos da epidemia com o jornalista José Roberto Toledo.
Naturalmente, não foram só os podcasts a oferecer contexto ao público. Veículos variados apostaram nisso, demonstrando grande procura por esse serviço. Contextualizar é tão importante quanto informar, e precisa estar no cardápio jornalístico diário. Um exemplo: não basta noticiar a taxa de eficácia de um imunizante. É preciso lembrar o nível de segurança apontado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 50%. Sem essa informação, a partir da comparação entre duas ou mais vacinas, corre-se o risco de criar desconfiança sobre as que têm taxas menores, mas que ainda são cientificamente aceitáveis e consideradas seguras. Contexto ajuda a explicar e ajuda a entender.
Cobertura no Brasil é difícil
A epidemia é mundial, mas a cobertura é diferente em cada lugar. Jornalistas podem acompanhar o trabalho de seus colegas em outros países e até reaproveitar boas ideias, mas cobrir a Covid-19 no Brasil reserva desafios únicos. O país é um dos maiores do mundo, tem uma população imensa e um governo federal que relutou em reconhecer a gravidade da situação e a coordenar ações de combate. Temos um sistema universal de saúde que é, ao mesmo tempo, problemático e heroico, complexo e necessário para o enfrentamento da doença. Ultrapolarização política, negacionismo científico e crescentes agressões aos jornalistas (lideradas, inclusive, pelo presidente da República) tornam a tarefa de informar muito mais complicada.
Neste primeiro ano de pandemia, os jornalistas do país aprenderam que era necessário desviar de zonas de tensão, insistir na cobertura e estabelecer agendas que só no Brasil fazem sentido.
Trabalho colaborativo
Três meses depois do surto global, o Ministério da Saúde não só atrasava números sobre a doença como culpava os governos estaduais pela falta de transparência desses dados públicos. Diante da necessidade de informar o alastramento da Covid diariamente, seis veículos formaram uma força-tarefa para colher junto às secretarias de saúde os dados de contaminação e mortes. G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL formaram o consórcio midiático numa iniciativa rara na paisagem brasileira. Com organização e método, acertaram em três frentes: mantiveram a rotina de informar a evolução da doença; fortaleceram a credibilidade de suas marcas; e reduziram suas dependências dos dados sistematizados pelo governo federal
A lição? Se o empecilho é comum, a solução pode ser coletiva.
De olho nos dados
O consórcio dos veículos de imprensa não foi o único resultado dos engasgos federais na distribuição de informações. A opacidade crônica do Ministério da Saúde e a indisposição do governo Bolsonaro de prestar contas acendeu a luz vermelha nas redações. Repórteres e editores perceberam que não poderiam esperar pela boa vontade das autoridades, e saíram à cata de material para notícias em bases de dados e portais da transparência. A Lei de Acesso à Informação foi muito acionada pelos profissionais e o jornalismo de dados nunca foi tão forte. Organizações não-jornalísticas foram bastante importantes na disseminação de uma cultura de accountability, como a Transparência Brasil, a Open Knowledge e o Fórum do Direito de Acesso a Informações Públicas. Reaprendemos que os dados não nascem só nas árvores ou em coletivas de imprensa.
Corrigir e desmentir
O jornalismo responsável teve que se desdobrar em muitos no primeiro ano da pandemia. Foi necessário informar com critério, neutralizar boatos, afastar teorias conspiratórias, corrigir e até desmentir autoridades. Em mais de uma oportunidade, veículos grandes e pequenos precisaram grafar em manchetes as verdades que apenas seus colunistas tinham o costume de fazer. Disseram, por exemplo, que Bolsonaro mentiu em discurso na ONU, que mentiu em sua live semanal, e que o ministro-general Eduardo Pazuello mentiu sobre o tratamento com cloroquina.
Esse despudor é incomum na história do jornalismo brasileiro, mas jornalistas e empresas aprenderam que, na guerra das narrativas, não basta corrigir; é necessário apontar que o outro lado está mentindo.
Tomar partido
As redações aprenderam outra lição parecida nesses tempos: a de que não podemos confundir isenção com omissão. Por isso, às vezes, é necessário sim escolher um lado e marcar posição a partir dele. Editoriais manifestaram sua impaciência com o governo, âncoras não esconderam sua indignação com a incompetência das autoridades, e agora que a vacinação é uma realidade, o consórcio de veículos de imprensa lançou campanha pela imunização de todos. Parece apenas sensato, mas, diante da tradicional letargia das empresas de comunicação e sua resistência em colidir com governos, é uma nítida mudança, fruto de amadurecimento.
Jornalista também pega
Ninguém duvidava que pudesse acontecer, mas tivemos a confirmação pela via mais amarga. Neste primeiro ano de pandemia, a Covid-19 contaminou e matou jornalistas também. Segundo as contas da Press Emblem Campaign, o novo coronavírus foi fatal para 727 jornalistas, 77 deles no Brasil. Como médicos, enfermeiros e outros tantos, jornalistas se arriscam todos os dias nas ruas e estão expostos aos riscos da nova doença. O verdadeiro aprendizado não está em se convencer do perigo, mas adotar protocolos sanitários rígidos e exigir das empresas treinamento e condições dignas para continuar trabalhando.
Inovar importa
Em maio de 2020, expressei meus temores de que a pandemia traria riscos iminentes à ética jornalística, com o desmonte das redações, o aumento da exploração e da precarização dos jornalistas. Alguns resultados já podem ser sentidos e outros vão determinar novos arranjos nos modos de produção das notícias. Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, tivemos quem buscasse oportunidades. O espírito inovador não faz distinção e pode encarnar em corpos grandes ou pequenos. Por isso, foi uma ótima notícia o reconhecimento do Radar Aos Fatos como grande vencedor da categoria Inovação no Prêmio Gabo 2020. A iniciativa é “uma ferramenta de monitoramento em tempo real do ecossistema de desinformação brasileiro”. Com o uso de inteligência artificial e a partir da identificação de padrões linguísticos, o algoritmo capta tendências desinformativas na web, permitindo que a enxuta equipe de jornalistas de Aos Fatos produza reportagens que combatam boatos ou mentiras. No meio da pandemia, o Radar Aos Fatos conseguiu mostrar que o deputado Osmar Terra (MDB-RS) – cotado para o Ministério da Saúde – era o parlamentar que mais vinha desinformando no Twitter. Outra reportagem denunciou que o Facebook tinha exibido massivamente anúncios que promoviam curas falsas para a Covid-19.
Inovar importa, independente do tamanho do veículo jornalístico.
Vai demorar
A cobertura da Covid-19 é o maior desafio jornalístico dos últimos tempos. Talvez seja a maior história que muitos de nós irá contar. É desses eventos transformadores que dividem períodos, forçam sociedades a se reorganizarem e que redefinem parâmetros. É um acontecimento complexo e dinâmico que determina sua própria extensão e alcance. Isso quer dizer que ele não vai desaparecer de repente ou que vá se resolver rapidamente. Não, não vai. É melhor nos prepararmos para mais alguns meses, quem sabe, anos de coberturas assim…
A fase de vacinação está só começando e ainda há muito a narrar, descrever e interpretar: a compra de imunizantes e insumos, a logística de recebimento e distribuição, o treinamento e capacitação das equipes de aplicadores de injeção, o aparecimento de novas variantes do vírus, eventuais reinfecções, guerras comerciais entre fabricantes e governos, movimentos antivacinas, e muitos outros desdobramentos.
Todos aprendemos muito com a pandemia, mas este foi só o intenso primeiro ano de convívio nessas condições extraordinárias. Precisamos ser pacientes e tenazes, firmes e fortes.
Que os jornalistas tirem mais lições dessa experiência, que aproveitem para se qualificar em coberturas desse tipo – pois nada nos garante que esta seja a única pandemia que enfrentaremos – e que não descuidem da autoproteção. Sob o signo do coronavírus ou fora da sua órbita, ainda precisamos de mulheres e homens dispostos a registrar e a contar os dias que vivemos.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Rogério Christofoletti é Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.