Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Políticas de vacina e vacinas políticas

(Imagem: Depositphotos/ tonellophotography)

Quase todos os principais Laboratórios farmacêuticos do mundo estão se acotovelando para assegurar seu espaço na América Latina. A disputa por esse posto de provável fornecedor da vacina contra a COVID-19 se passa em algum lugar entre a Cidade do México, Buenos Aires, Lima e São Paulo. Essa competição sanitária coloca em cena, de forma inesperada, as relações estruturalmente assimétricas existentes nessa área — assim como em outras — entre os países do Sul e do Norte.

O que, de fato, são esses Laboratórios?

São grandes empresas da área da saúde, oriundas das grandes potências mundiais econômicas: dos Estados Unidos (Covaxx; Johnson & Johnson; Merck; Novavax), da China (CanSino; CNBG; Sinipharm; Sinovac), da Alemanha (Curevac; Pfizer), da Bélgica (Janssen), da França (Sanofi-Pasteur), da Itália (ReiThera), da Rússia (RDIF-Sputinik V), do Reino Unido (Oxford/AstraZeneca). A filantropia não constitui a razão de ser dessas companhias. Ela vem acompanhada do objetivo prioritário, o lucro, tal como ocorre com toda e qualquer empresa.
À primeira vista, surpreende essa sua presença na América Latina, “continente” de famílias com poder aquisitivo relativamente baixo, se comparado ao da renda média norte-americana, japonesa ou européia. Três fatores, no entanto, permitem compreender esse interesse sanitário e econômico. O primeiro é particularmente atraente: o mercado em potencial é enorme. Além disso, em razão do descumprimento social de medidas de prevenção do coronavírus, os sistemas de saúde ficaram rapidamente saturados e o número de pessoas infectadas se expande continuamente. A América Latina é atualmente a região do mundo com mais pacientes doentes, mortos ou em situação de risco grave e iminente. Não se pode esquecer que, incapazes de oferecer medidas de defesa e prevenção eficazes e suficientes, carentes de estruturas hospitalares à altura do desafio, os governos desses Estados, e seus cidadãos, contam com a vacina como a única solução viável, e por isso recorrem àqueles que são capazes de criá-la.

As autoridades regionais estão atirando para todos os lados e apelando para todos os santos. Os chefes desses Estados aproveitaram a tribuna das Nações Unidas, no final de setembro, para manifestar suas preocupações e expectativas quanto ao acesso universal à vacina. Eles aderiram ao sistema Covax Facility, da OMS, para garantir, mediante pagamento, o fornecimento de remessas mínimas. O México, por exemplo, efetuou, em 8 de outubro de 2020, um pagamento de 180 milhões de dólares, o que lhe dá direito a mais de 51 milhões de doses. Eles apelaram aos grandes Laboratórios do mundo, mencionados acima, e estes, diante do tamanho das necessidades e da urgência, responderam positivamente a esses pedidos, sem ignorar a força motivacional do primeiro dos fatores de seu interesse particular em atender esses Estados.

Com economias “intermediárias”, os países latino-americanos oferecem outra vantagem igualmente decisiva aos olhos dessas empresas. Eles têm a capacidade industrial para produzir localmente as vacinas criadas por esses Laboratórios internacionais. Argentina e México anunciaram, em 12 de agosto de 2020, um acordo de cooperação com a empresa britânica AstraZinovac. Esse contrato recebeu o apoio financeiro do homem mais rico do México, Carlos Slim. A Fiocruz, no Brasil, também fechou contrato com a britânica AstraZeneca. O Instituto Butantan, em São Paulo, associou-se à chinesa Sinovac. A vacina já tem, inclusive, um nome: CoronaVac. O TecPar, Instituto de Tecnologia do Paraná, buscou um acordo semelhante com a russa RDIF-Sputnik V.

Além da certeza de atenderem a uma demanda multimilionária, que será honrada financeiramente, e fabricada localmente, esses Laboratórios beneficiam-se de uma terceira contrapartida significativa. O de poder dispor de voluntários em abundância para realizar os ensaios ditos de fase três, quando se passa de testes em animais para testes em seres humanos. Os governos, pelas razões expostas acima, concederam todas as autorizações necessárias. Os trabalhadores da saúde, em primeiro lugar, por serem considerados vítimas em potencial, responderam massivamente a esses pedidos. A AstraZinovac está realizando testes na Argentina, no Brasil e no México. A CNBG na Argentina. Casino e CureVac no México. Janssen e Novavax no México. Johnson & Johnson e Sinopharm no Peru. Sinovac no Brasil e no Chile. Sanofi-Pasteur no México, assim como a ReiThera. Sputnik-V no Brasil e no México.

A pandemia é mortal. Ela mata. Ela é também a origem de várias disputas políticas. O contexto de competição “custe o que custar” pela produção da vacina provocou outras disputas e rivalidades. Os governos latino-americanos têm com que se preocupar: os países ricos lhes legarão a parcela devida das vacinas? Os Estados-Unidos, preocupados com a penetração de Laboratórios russos e chineses, tentam dar uma rasteira, e intervir no processo. No Brasil, o governo federal e os estaduais competem por vacinas e laboratórios. O presidente Jair Bolsonaro, depois de receber um enviado de Donald Trump, o Conselheiro de Segurança Nacional Robert O’Brain, desautorizou o seu terceiro ministro da saúde, o general Eduardo Pazuello, que havia acabado de anunciar uma grande compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac. Essa vacina tem um duplo defeito: é de origem chinesa, logo, ‘comunista’, e vem sendo promovida por um dos opositores de Bolsonaro, o governador do Estado de São Paulo, João Doria.

A OPAS, Organização Pan-Americana da Saúde, tentou oportunamente soprar ao pé do ouvido algumas reflexões, e advertiu, uns e outros, em 23 de outubro, nestes termos: “A América Latina não deve depender exclusivamente da vacina para acabar com a COVID-19”.

Texto publicado originalmente em francês, em 26 de outubro de 2020, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques.

Tradução de Manoel Sebastião Alves Filho, revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É Formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014).