Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Seletividade dos noticiários internacionais em tempos de pandemia e convulsões sociais

(Foto: Fotomovimento/Pedro Mata)

A humanidade está atravessando um dos períodos mais conturbados das últimas décadas. Além da pandemia do coronavírus – que, por si só, já seria motivo suficiente para considerarmos o atual momento como extremamente complicado – há uma grande quantidade de convulsões sociais ocorrendo em vários pontos do planeta.

Diante dessa realidade, é interessante constatar como a mídia brasileira dá bastante ênfase a determinadas mobilizações populares e, em contrapartida, praticamente não noticia outras. Trata-se do que Perseu Abramo classificava como “padrão de ocultação midiática”: técnica que a imprensa aplica para esconder determinados fatos, tornando-os, assim, “desconhecidos” do grande público.

Os principais grupos de comunicação alegam que, ao escolherem as pautas internacionais, levam em conta critérios como importância e relevância global de um acontecimento, potencial interesse do público, ineditismo e atualidade.

No entanto, não sejamos ingênuos. As escolhas das notícias internacionais não seguem critérios propriamente técnicos, mas, sobretudo, ideológicos. Isso explica porque intervenções militares, ações estatais, mobilizações populares ou violações aos direitos humanos podem ser interpretadas de maneiras diferentes, dependendo de quem as pratica.

A mesma mídia que destaca os movimentos que derrubam estátuas de traficantes de pessoas escravizadas e de racistas mundo afora se cala diante dos milhares de equatorianos que têm saído às ruas do país para protestar contra as medidas econômicas neoliberais de Lenín Moreno.

A princípio, seria plausível concluir que os protestos que colocam abaixo monumentos históricos ligados a escravidão são mais noticiados pois ocorrem em países desenvolvidos, sedes das grandes agências de comunicação como Reuters e Associated Press – responsáveis por 80% das notícias internacionais que circulam pelo planeta.

Todavia, a questão é muito mais complexa e controversa. Os movimentos que se dirigem aos monumentos históricos não causam temor para os grandes capitalistas, cujos interesses a mídia defende. Em contrapartida, os protestos equatorianos colocam em xeque o modelo econômico neoliberal. Este “mau exemplo” deve ser escamoteado do grande público.

Ainda no tocante às mobilizações populares, os protestos antirracistas nos Estados Unidos e na Europa são entusiasticamente saudados nos noticiários como exemplos de engajamento social. Em contrapartida, quando negros e pobres se levantam contra as inúmeros injustiças no Brasil, logo são reprimidos pelas forças sociais ou estigmatizados em programas policialescos.

No Cidade Alerta, Brasil Urgente ou Polícia 24 horas, ações policiais similares a que matou George Floyd em Minneapolis são constantemente aplaudidas e incentivadas. Também não é difícil supor que, se Floyd fosse brasileiro, sua morte seria celebrada pelos haters nas redes sociais, a partir de suas frases típicas como “mais um CPF foi cancelado com sucesso”, “fizeram um bom trabalho”, “poderiam ter matado mais”, e, é claro, “bandido bom é bandido morto”.

Parafraseando o ator estadunidense Will Smith, o vídeo de um jovem negro que desmaiou após ser estrangulado por um PM, bastante compartilhado nas redes sociais nos últimos dias, comprova que o racismo brasileiro não está piorando, está sendo filmado. Minneapolis é aqui.

Como não poderia deixar de ser, em tempos de pandemia, as diferentes maneiras com que os países lidam com o temível coronavírus também estão contempladas pela seletividade midiática.

A bem-sucedida experiência do Vietnã no combate à Covid-19 é um exemplo de notícia que passou praticamente desapercebida por aqui. A nação do sudeste asiático, ciente que não possuía muitos recursos para combater o vírus, colocou em prática um lockdown responsável por fechar aeroportos, comércios e escolas, entre outros setores. Resultado: nenhum óbito.

E já reabriram tudo, inclusive permitindo partidas de futebol com público nos estádios. Tudo isso em um país com 95 milhões de habitantes, distribuídos em apenas 331 mil quilômetros quadrados (bem mais povoado do que o Brasil).

O fato de o Vietnã ser um país considerado socialista diz muito sobre a ocultação de sua experiência bem-sucedida no enfrentamento ao coronavírus. Nossa mídia hegemônica ainda opera a partir de uma lógica editorial que remete ao imaginário geopolítico da Guerra Fria.

Consequentemente, uma nação socialista dificilmente será retratada de maneira positiva. Os manuais de redação dos noticiários internacionais parecem norteados pela seguinte lógica: não tendo informações negativas para divulgar sobre países contrários ao status quo ocidental, logo não se noticia.

Coreia do Norte, Cuba e Venezuela também registram bons resultados no combate a Covid-19, porém, para a mídia hegemônica, os exemplos que devem ser seguidos são os “científicos” governos da Alemanha, Finlândia e Nova Zelândia.

Quando, em uma mesma matéria se fala em coronavírus e Venezuela, é somente para mencionar que Nicolás Maduro, assim como Jair Bolsonaro, também é defensor do uso de cloroquina no tratamento da Covid-19.

Entretanto, a Venezuela está entre as nações latino-americanas que contabilizam os menores números de contaminados e mortos por Covid-19. Até quinta-feira (25/6), o país registrava um total de 4.365 casos confirmados, com 1.327 recuperados e somente 38 mortos.

Provavelmente, os venezuelanos alcançaram essa posição em função das medidas restritivas rígidas adotadas antes mesmo que o vírus chegasse e que foram reforçadas nos quatro primeiros dias após o registro do primeiro caso, ocorrido em 13 de março.

Conforme é de praxe, os dados acima não foram manchete nos principais jornais do país, não merecem comentários na GloboNews, tampouco foram mencionados por William Bonner no Jornal Nacional.

Desse modo, é possível concluir que os noticiários internacionais feitos por nossa imprensa praticamente se resumem em repercutir o que as mídias estadunidense e europeia querem que repercuta. Trata-se de uma prática típica de linhas editoriais provincianas, limitadas a reproduzir percepções de mundo alhures, que contribuem decisivamente para nosso processo de colonização cultural, em que deixamos que pensem por nós, que decidam nosso destino.

Não bastassem os discursos subservientes dos noticiários internacionais, também há a indústria cultural e sua poderosa máquina de propaganda ideológica que, impregnada em nosso subconsciente, pode fazer com que muitos indivíduos escolham, simplesmente, imitar o que vem de fora.

Crescemos nos sentindo inferiores em tudo, a partir de uma lógica bovarista. Em contraposição a estadunidenses e europeus, os “povos escolhidos”: “mais inteligentes”, “mais bonitos” e “mais puros”; somos o “país da corrupção”, dos “bandidos”. Nossas lojas têm nome em inglês, porque soa melhor. Seguimos nos encantando com as ilusões hollywoodianas. Nossos modelos a seguir são Rambo ou Bradock. Nossos filhos querem beber Coca-Cola, comer McDonald´s, seus heróis são o Homem-Aranha ou o Super-homem. A Disney, “lugar mágico”, é nosso sonho de consumo.

Para se ter ideia do vira-latismo de alguns de nossos compatriotas, dados da Anvisa apontam que, na última década, a importação de sêmen dos EUA para inseminações artificiais no Brasil cresceu mais de 2.000%, sendo que o perfil dos doadores escolhidos representa 95% de brancos, 52% com olhos azuis, 64% têm cabelos castanhos e 27% são louros.

E assim, no que depender dos noticiários geopolíticos da mídia e da propaganda ideológica da indústria cultural, no plano discursivo/simbólico, a dominação das grandes potências globais sobre o Brasil, infelizmente, estará garantida.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor dos livros 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV) e Crônicas no Jornal O Tempo: o olhar de Francisco Ladeira sobre o mundo contemporâneo (Vicenza Edições Acadêmicas).

Marcelo Antônio Rocha de Oliveira é bacharel e pós-graduado em Administração. Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica pelo IF Sudeste MG, Campus Rio Pomba.