Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um manda, o outro obedece

(Foto: Marcos Corrêa/PR)

Enquanto Bolsonaro negava o vírus porque brasileiros estavam imunizados de tanto nadar no esgoto, o artista, ativista e dissidente chinês Ai Weiwei rodava na Europa o documentário Coronation. O primeiro caso de Coronavírus apareceu na China em 31 de dezembro de 2019. Por causa da negação e ocultação da doença, menos de um mês depois a cidade onde o vírus apareceu foi colocada sob lockdown e logo virou pandemia global. Rodado na Europa e com as filmagens feitas na China por cidadãos comuns, Ai Weiwei registrou do primeiro ao último dia o lockdown em Wuhan, denunciando autoridades e mostrando a resposta brutal militarizada do Partido Comunista. “As pessoas podem mover montanhas quando trabalham unidas”, lastima a ex-presidente do Sindicato. Coronation, primeiro documentário sobre a pandemia no mundo, está disponível na plataforma digital da 44ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo até o dia 4 de novembro. A Mostra confirma que é na arte onde melhor deciframos o enigma da realidade.

Bolsonaro cansou de negar o vírus. Agora nega a vacina. Precisamos de Ai Weiwei para registrar o enigma Bolsonaro que provoca rixas internas jogando dos dois lados, a retrógrada ideologia olavista contra a força dos militares e das armas de fogo, cujos registros cresceram 120% desde 2019. Diante de mais de 5 milhões de infectados e 155 mil mortos, o presidente ainda politiza a vacina, nega recursos da Anvisa para insumos da produção da “vacina da China”, e frita na humilhação um general tornado ministro da Saúde de araque.

“Um manda, o outro obedece” é o lema da nossa política.

O inimigo é a China de Ai Weiwei. Bolsonaro esquece que o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) da vacina de Oxford (AstraZeneca) produzida pelo Instituto Bio-Manguinhos também vem da China. Assim como o celular, computador, tablet, vestuário e algumas redes sociais que usa. Bolsonaro macaqueia Trump. O que acontecerá com a política externa brasileira se o democrata Joe Biden vencer as eleições nos Estados Unidos?

“Qual política externa?”, o ex-chanceler Celso Amorim pergunta na Época. “Não temos uma. O que existe é uma submissão total à Trump. Vão precisar fazer uma redefinição muito profunda. Não conheço nenhum país que briga abertamente com seu maior parceiro comercial como estamos fazendo com a China. Os chineses são responsáveis por 70% do superávit comercial brasileiro. Ninguém entende como o governo consegue brigar com a China”.

O Brasil se defende do comunismo que acredita estar prestes a invadir o país através da China.

Nosso chanceler vai atrás. “O Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, foi o discurso de Ernesto Araújo na formatura do Instituto Rio Branco semana passada. “É bom ser pária. Esse pária aqui, esse Brasil; essa política externa Severina tem conseguido resultados”. E Araújo aproveitou para tirar casquinha de “Morte e Vida Severina” criticando seu autor João Cabral de Melo Neto pelo seu “ lado errado, o lado do marxismo e da esquerda”, e se comparando, “modestamente também me considero diplomata e poeta”. João Cabral foi perseguido e afastado do Itamaraty em 1953.

Na mesma cerimônia, Bolsonaro instruiu os futuros diplomatas a “estar do lado da verdade” na guerra contra as “falsas narrativas”, a defesa da Amazônia. Informou que vai convidar diplomatas estrangeiros para uma viagem de hora e meia a Manaus-Boa Vista “onde verão em nossa floresta amazônica nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada”. Haja Ai Weiwei.

Não há nível de comparação com o chanceler de hoje e os de antes. “Eu mesmo fui testemunha disso há 20 anos quando cheguei aqui [Brasília] há 20 anos e fui entrevistar o então ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer. Fiquei impressionado com sua visão aberta do mundo, sua bagagem cultural e seu domínio das línguas”, Ricardo Noblat confirmou no El País.

Hoje o Brasil escolheu ficar ao lado de países como Paquistão, Egito, Iraque, Arábia Saudita na proposta de retirar “educação sexual” da pauta da ONU e votar contra todas as leis progressistas. Escolheu ficar ao lado da Hungria e da Polônia. Tanto o premier húngaro, Viktor Orbán, como o presidente polonês, Andrzej Duda, comungam com Bolsonaro ataques à liberdade de imprensa, o ultranacionalismo, a restrição às ONGs internacionais, a criminalização à comunidade LGBT+, proibindo até uma das únicas formas de aborto legal. A União Européia quer vincular o repasse de fundos milionários do orçamento plurianual (2021-2027) ao respeito desses dois países ao Estado de Direito, mas não está fácil.

Bolsonaro condenou a cristofobia no seu discurso na ONU. Se é por isso que se tornou inimigo da China, não há explicação para a aliança ao ditador Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, que proíbe as igrejas, o cristianismo, e financia os grupos armados jihadistas.

Na política estamos com dinheiro nos buttocks, como o jornal britânico The Guardian traduziu as cuecas do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), que vai ser substituído no Senado pelo filho, acusado de cobrar propinas de 10% a 20% nos contratos. A acusação é de Maria Madalena Ferreira, ex-chefe de logística do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste, em Roraima. O julgamento do caso foi adiado para 2021, artimanhas do Centrão no Congresso que estuda anular a investigação das rachadinhas de Flávio Bolsonaro.

Ai Weiwei teria muito trabalho por aqui. São 13 milhões e meio de desempregados. Entre China, Índia e Rússia, o Brasil teve o pior desempenho dos últimos 20 anos nos BRICs: cresceu pouco mais de 43% enquanto a China, inimiga de Bolsonaro, cresceu 425,4%.

O governo planeja eliminar de 100% para 40% a meta que exige da Funai ações de proteção a direitos indígenas nas comunidades do país — a grilagem invade as áreas protegidas. Nossas matas queimam, florestas são filtros ecológicos que nos protegem das doenças. Mas Ibama e ICMBio, com orçamento encolhido por decisão do ministério da Economia, acumulam dívida de mais de R$ 25 milhões, não conseguem combater os incêndios — Ricardo Salles escreveu na Folha de S.Paulo este domingo que o Brasil é “um dos países que mais preservam o meio ambiente”.

Nas cidades, a violência aumenta. Só no Rio de Janeiro, milícia e tráfico dominam metade do estado, e eram os milicianos que frequentavam os gabinetes dos Bolsonaro, como o ex-sargento Fabrício Queiroz, preso, e o ex-capitão Adriano da Nóbrega, morto como queima de arquivo.

Para o STF acaba de ser sabatinado um juiz federal indicado para a vaga por notório saber que plagiou a dissertação de mestrado e concluiu o pós-doutorado antes do doutorado. Na sabatina, não soube responder o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer (PP-PI). Kássio Marques pode explicar como quiser a legalidade de todas essas coisas. Tudo pode ser legal. Mas não é moral.

Bolsonaro está em outdoors de ruralistas e empresários nas margens das rodovias que interligam Amazônia, Centro-Oeste e o Nordeste. É uma campanha camuflada para a presidência em 2020. Mas para as próximas eleições os candidatos bolsonaristas estão perdendo, Crivella no Rio, Engler em Belo Horizonte.

Em São Paulo, Russomanno perde enquanto papagueia Bolsonaro dizendo que pobre está imunizado, não pega vírus porque não toma banho. Assim mesmo na interiorana Jaboticabal paulista um Marcos Bolsonaro, que se diz primo do presidente, quer se eleger prefeito criando uma Polícia Militar paralela. E o candidato a prefeito do partido Novo, Filipe Sabará, ratificou sua declaração de bens, passa de R$ 15 mil para 5 milhões.

No Rio os jingles no Rio vão do samba ao gospel e a milícia lança candidatos próprios. Há dancinhas no TikTok. A live de Caetano para a candidata do PC do B em Porto Alegre foi taxada de show comício, mas Manuela d’Ávila está na frente.

Um giro pelas propagandas dos candidatos dão um retrato do Brasil. Concorre a vaga de vereadora a carioca Capitã Cloroquina e no Recife, Marcos Smoke, a favor da maconha. No interior paulista há dois esdrúxulos candidatos à vaga de vereador, Paulo Bosta e Merda. Em Porto Alegre, Tia Carmem dirigiu uma boate por 20 anos e tenta ser vereadora com o refrão “Tia Carmem vai colocar ordem na zona”. Em Santa Catarina há um anão e outro catarinense com pinta de Super-homem que “concorreu em 2014 a deputado estadual mas perdeu e resolveu ficar ‘invisível’ até a próxima.

Um dos filmes da 44ª Mostra de Cinema Internacional, o sueco Suor dirigido por Magnus von Horn sobre a “personal trainer e digital influencer Sylwia”, mostra a realidade escandinava num ótimo filme. É a cobrança da uma alegria constante que ela desiste de exibir nos vídeos e na TV e, um dia, chora. No ar, para seus milhares de seguidores. A realidade escandinava inspira tal proteção ao cidadão que encoraja Sylwia a enfrentar sozinha, no meio da noite, um desses maníacos sexuais fixados na sua imagem jovem e sensual. Impensável desse lado de cá do planeta. No mínimo, Sylwia seria estuprada e morta. Na Suécia, não.

A inveja não é só dos escandinavos. É das mulheres assumindo a liderança na Dinamarca, Finlândia, Islândia. É do papa no documentário Francesco onde aprovou a união civil de pessoas do mesmo sexo, “homossexuais são filhos de Deus”. E, enquanto Bolsonaro briga até com a vacina da China, dá inveja o abraço do ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica (2015-2020), 85 anos, ao adversário político e também ex-presidente, Julio María Sanguinetti (1990-1995 e 1995-2000), 84 anos. “Não cultivo ódio”, disse Pepe.

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Norma Couri é jornalista.