“Brincar com a morte é perverso. Ao alterar os números, o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”
Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados
Cena 1: “A doença avança sem controle. Nas últimas 24 horas foi contabilizado um total de 32 novos afetados. Os especialistas do CDC mandados à ilha confirmam que se trata de um surto epidêmico causado por um vírus.”
Cena 2: “Mais uma epidemia de quê? – Uma epidemia de rumores. Boatos que estão destruindo a comunicação interna de vocês.”
Podemos pensar e deduzir que ambas as situações podem ocorrer em determinadas localidades do mundo na atualidade diante da pandemia do vírus da covid-19. Seja pelos fatos em si ou pelo volume de informações falsas ou não, distorcidas ou forjadas, mas que circulam em redes e mídias sociais e se refletem nos ambientes organizacionais. Pelas recentes contradições dos números que envolvem a pandemia, isso se intensifica no caso brasileiro. O Ministério da Saúde divulgou, no dia 7/6, dados divergentes sobre a quantidade de mortos e infectados pelo novo coronavírus. O primeiro balanço revelou 1.382 mortes em 24 horas, o que aumentava o total de óbitos para 37.312. Já o segundo, divulgado no painel oficial da pasta uma hora depois, mostrou apenas 525 óbitos, uma diferença de 857 pessoas. O MS também resolveu criar uma metodologia que se contrapõe a que é utilizada pelo mundo inteiro segundo orientações da OMS.
O assunto provocou reações e manifestações dos mais diversos setores da sociedade e pelo mundo. O jornal inglês The Guardian, por exemplo, registra uma reportagem no dia 8/6, segunda-feira, com o título “Brasil deixa de divulgar número de mortos por Covid-19 e apaga dados do site oficial”, do repórter Dom Phillips, correspondente do veículo no Rio de Janeiro. Na reportagem afirma que o governo brasileiro pratica “totalitarismo e censura” com o uso da nova metodologia. E grupos jornalísticos que envolvem os portais G1 e UOL, e os jornais O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo decidiram estabelecer parceria, de maneira colaborativa, para apurar e divulgar informações diretamente dos 26 estados e do DF. Posteriormente, decisão do STF determinou que o MS retornasse a divulgar dados sintonizado com a OMS, mas a situação permanece tensa.
Se os cenários do início do texto fazem parte do universo fictício da obra do publicitário Ferran Ramon-Cortés, “Vírus – o poder dos boatos nas empresas”, deixa claro que o ditado “a vida imita a arte”, mais do que em outros tempos, torna-se uma referência presente em nossa realidade.
Levam também a algumas reflexões necessárias se tomarmos como alerta o que escreveu a filósofa Hannah Arendt em “Origens do Totalitarismo”, onde se destaca o trecho: “O súdito ideal de um governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o real e a ficção, ou seja, a realidade da experiência, e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios de pensamento)”.
Não é tão difícil aproximar as referências dos autores do que se passa no Brasil neste período. Basta observarmos o que demonstram dados do IPM – Instituto Paulo Montenegro – e da ONG Ação Educativa em estudo publicado em 2016 no UOL Educação: somente 8% da população brasileira em idade de trabalhar é considerada plenamente capaz de entender e se expressar por meio de letras e números. Portanto, passíveis de não distinguir o que é fato e o que se dá como algo ilusório.
A crítica literária Michico Kakutani, autora do livro “A morte da verdade”, se apoia em um tripé que reúne questões como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção e a corrosão da linguagem para formular uma pergunta-chave: até que ponto governos podem interferir e mesclar realidade e ficção no dia a dia das pessoas e nas estruturas organizacionais e provocar desinformação, condutas e decisões inadequadas?
“Declínio da verdade” ou “fatos alternativos”?
Pesquisa conduzida pelo instituto YouGov em conjunto com a revista The Economist – março de 2020 – identificou que 13% dos americanos acreditavam que a crise da covid-19 era uma farsa, enquanto 49% tinham a crença que a pandemia poderia ter sido provocada pelo homem. Se os dados na realidade americana preocupam, eles não são localizados. Outro estudo, liderado pelo King’s College London (Reino Unido), aponta que há uma relação estreita entre indivíduos que acreditam em notícias falsas sobre a pandemia e aqueles dispostos a desrespeitar a quarentena imposta por governos de todo o mundo e a não usar máscaras durante a circulação em ambientes públicos, por exemplo. Vemos de maneira bem clara como a flexibilização adotada de maneira precipitada Brasil afora provoca descumprimentos básicos por parte de determinadas pessoas.
O Reuters Institute de Oxford se soma às estatísticas cujo reforço demonstra que políticos, celebridades e outras figuras públicas são responsáveis por espalhar cerca de 20% das fake news sobre o coronavírus. Além disso, aponta o estudo, essas pessoas geram aproximadamente 70% do engajamento sobre o assunto nas redes sociais. As informações foram divulgadas em artigo com o título “Pessoas públicas são grandes divulgadoras de fake news sobre Covid-19’, assinado pela jornalista Sabrina Brito em 8/4, no Portal da revista Veja.
A notícia falsa é mais “original”
Uma notícia falsa tem 70% a mais de probabilidade de ser compartilhada na internet de acordo com estudo realizado em 2019 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Para os pesquisadores, nas redes sociais, a verdade consome seis vezes mais tempo que uma fake news para atingir 1.500 pessoas.
Especificamente sobre a pandemia, Gordon Pennycook, pesquisador em psicologia da desinformação da Universidade de Regina, Canadá, conduziu um levantamento em que pediu aos participantes que analisassem uma mistura de manchetes verdadeiras e falsas sobre o surto de coronavírus. Ao serem solicitados a julgar a precisão das declarações, os participantes disseram que as notícias falsas eram verdadeiras em cerca de 25% das vezes. Quando foram simplesmente questionados se compartilhariam a manchete, no entanto, cerca de 35% disseram que repassariam as notícias falsas — 10% a mais. Pennycook deduz a partir do estudo que as pessoas estavam passando adiante material que eles poderiam saber que era falso, se tivessem pensado mais diretamente.
“O boato é o mercado obscuro das informações”?
A resposta, segundo o sociólogo T. Shibutani, é sim! Medos, esperanças, curiosidades, inseguranças, tensões, ideologias, crenças e preconceitos acabam por alimentá-lo, diz o professor de psicologia Nicholas DiFonzo, autor do livro “O Poder dos Boatos”. DiFonzo revela que onde há incerteza pode haver boatos. “A incerteza é algo que os líderes deveriam tentar medir regularmente. Isso pode representar um desafio. Mesmo quando a dúvida é muito grande, as pessoas talvez não se sintam propensas a interrogar fontes oficiais e, naturalmente, essa relutância leva a um aumento da ambiguidade”.
A narrativa de “Vírus – o poder dos boatos nas empresas” tem como pano de fundo da trama dois ambientes paralelos: um, de um complexo hoteleiro em uma pequena ilha caribenha, atingido por uma rara epidemia e, outro, relacionado a uma empresa europeia que passa por uma crise de boatos.
A obra explora por um lado a disseminação de um vírus desconhecido e paralelamente se dá uma mescla de capítulos em que um elo comparativo vai se sucedendo e demonstrando o perigo dos ruídos e como eles desestabilizam as organizações. O texto, por exemplo, deixa claro que muitas vezes o problema de dificuldade na transmissão de mensagens fundamentais para os públicos está efetivamente na cúpula organizacional, destacadamente no presidente ou CEO. Algo no Brasil que não é só mera coincidência. O que deixa claro que a decisão de se comunicar bem – verdadeira e para valer – é política e imprescindível para a sobrevivência e deve ser assumida por quem a conduz. O livro traz ainda, embutida, a mensagem sobre a importância de se difundir informações verdadeiras. Para não ocorrer confusão entre instâncias organizacionais e a sociedade. Viabilizar ações através de conteúdos com qualidade, e não apenas forjar meios, é também um dos preceitos básicos que a obra sinaliza.
Ao final, o autor propõe uma vacina imunizadora que consiste na combinação de ações que devem ser colocadas em prática por qualquer pessoa que tenha outras sob sua responsabilidade: conhecê-las bem, definir os canais de comunicação realmente necessários, ser transparente, claro, rápido, ter coragem e apostar na integridade.
Ponto que nos traz de volta à realidade nua e crua de um país em que a Defensoria Pública da União (DPU) é obrigada a se manifestar sobre o óbvio com um pedido liminar na Justiça Federal para que o Ministério da Saúde volte a divulgar imediatamente os números do Painel Coronavírus, com transparência. E alegue no documento que não pode qualquer chefe do poder executivo, federal, estadual ou municipal, escolher ou não tomar providências de enfrentamento ao coronavírus pois é um dever do administrador público. Bem como seja obrigada a enfatizar aos dirigentes sobre o dever do governo em informar correta e adequadamente à população não só sobre as medidas que as pessoas devem adotar para evitar sua contaminação e a dos demais, mas também todos os atos adotados pelo poder público no combate à disseminação da doença. Algo de muito errado está se dando na comunicação governamental no período. Triste momento para os brasileiros e para o país que não podem nem se iludir com a ficção pois a vivem em plena realidade.
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Referências
BUENO, Jaqueline da Costa. Comunicação organizacional informal: boatos e fofocas nas mídias digitais. 8o Interprogramas de Mestrado. Faculdade Casper Líbero. Disponível em: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/04/Jaqueline-da-Costa-Bueno.pdf
CUNHA, Carolina. Desinformação na era da informação: o compartilhamento de mentiras e boatos na internet. Portal UOL, 2016. Disponível em: https://bit.ly/3d3gNwd
DIFONZO, Nicholas. O Poder dos Boatos. SP: Campus, 2009.
KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade, notas sobre a mentira na era Trump. RJ: Intrínseca, 2018.
RAMON-CORTÉS, Ferran. Vírus: O perigo dos boatos nas empresas. São Paulo: Editora Academica de Inteligência, 2008.
ROBINSON, David. Por que pessoas inteligentes caem em mentiras e notícias falsas sobre o coronavírus? Portal BBC, 12/4/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-52239918
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Boanerges Balbino Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.