Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Vossa Excelência, a Mídia

Foto: Reprodução/Globo News

O Brasil tem acompanhado atentamente os desdobramentos da CPI da Covid e a busca pela responsabilização daqueles que negligenciaram a gravidade da pandemia e que, por omissão ou cálculo deliberado, colocaram o Brasil na mais trágica crise sanitária de sua história. Segundo dados do Ibope, nas três primeiras semanas de maio, 3,5 milhões de pessoas sintonizaram a Globo News para acompanhar as oitivas, com expressivos índices de audiência também no canal do YouTube da TV Senado, com pico de 229 mil visualizações no dia do depoimento do atual Ministro da Saúde, o quarto a ocupar a pasta desde o início da pandemia. Ainda que não estejamos diante de uma peça de entretenimento, evidencia-se um tipo de “realidade seriada” assistida por muitas pessoas em suas quase oito horas integrais diárias ou em compactos, cortes e resumos que circulam por diversas mídias, em telejornais e redes sociais. Afinal, nem todos desfrutam do pay per view diário das televisões por assinatura e têm que se contentar com melhores momentos do dia, que evidenciam as combinações, estratégias e contradições deste que é big brother político mais importante dos últimos anos. A CPI tem se tornado uma organizadora da linha do tempo dos acontecimentos, colaborando para que o consumo de informações sobre a pandemia esteja racionalmente disponível para o cidadão, criando novos circuitos e fluxos de circulação de mensagens, para além da fragmentação e superficialidade das redes sociais. Neste contexto, faz-se necessário compreendermos que o desenvolvimento e as consequências da CPI são amplificados em virtude do contexto de midiatização no qual vivemos hoje.

Os estudos na área de comunicação sobre midiatização remontam o surgimento da imprensa e se intensificaram nas últimas décadas, cujo sentido refere-se à influência da mídia em outros campos da prática social e institucional. Assim como urbanização não mudou apenas a cidade, mas também outros setores da sociedade, as mudanças que se dão no campo das mídias têm efeitos mais amplos sobre as instituições e suas implicações operam em outras áreas, tais como a política, religião e educação. Interessa-nos aqui, especialmente, esse impacto no campo da política. Para além de uma primeira impressão meramente tecnicista — a mídia enquanto dispositivo de mediação — a midiatização se refere a processos pelos quais mudanças socioculturais ocorrem em decorrência da mídia, que modela a atuação de outras instituições (família, religião, a escola etc.). Recentemente, foi possível observar durante o andamento da CPI da Covid algumas práticas que evidenciam essa ideia. A primeira delas refere-se ao esforço de usuários do twitter em refutar argumentos trazidos pelos depoentes, por meio de vídeos e áudios que contradiziam o que estava sendo dito, numa espécie de fact checking cidadão que não é feito por agências, mas por indivíduos de forma síncrona. Em alguns casos, era possível perceber também que as perguntas dos senadores se baseavam em questionamentos que circularam dias antes nas redes. Em um determinando momento, o Relator da CPI, senador Renan Calheiros, fez menção a perguntas que foram enviadas pelas pessoas diretamente ao seu instagram: “O que você gostaria de perguntar ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello?”, escreveu Renan em seu story no dia anterior. O uso de áudios e vídeos pelos senadores durante as suas perguntas têm cumprido também uma função inédita de acareação dos depoentes frente aos seus próprios depoimentos, em que os registros de discursos anteriores tem questionado o posicionamento das testemunhas na busca pela verdade em meio ao caos epistêmico da era atual da pós-verdade.

“Isso é muito Black Mirror”. Essa expressão em alusão à série de mesmo nome foi usada amplamente a partir de 2018 pelas pessoas ao se referirem a contextos que se apresentavam distópicos ou que evidenciassem o uso da tecnologia e de mídias de uma forma decisiva e nunca antes imaginada. Ao final de cada episódio, o expectador invariavelmente era tomado por uma dúvida: será que isso será possível um dia? De forma similar, talvez não pudéssemos conceber, há décadas atrás, que um indivíduo poderia editar um conteúdo que seria utilizado, em tempo real, em um inquérito conduzido em uma das casas legislativas do país de forma decisiva para refutar mentiras e estratégias de desinformação. A visibilidade midiática propiciada à CPI e o campo de possibilidades de uso das tecnologias, conjugados à atuação performática de algum dos senadores seduzidos pelos usos futuros de suas falas junto às suas bases de apoiadores, terão um impacto efetivo nos desdobramentos da CPI para a sociedade. Neste contexto de evidente impacto, o fenômeno da midiatização e sua interface com a política talvez requeira, evocando-se certa isonomia regimental, o uso do pronome de tratamento para Vossa Excelência, a Mídia.

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Rodrigo Maurício Freire Soares é doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas – Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor do curso de Relações Públicas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).