Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A morte da verdade no discurso de Bolsonaro

(Foto: Divulgação)

No dia 24 de março, o Brasil ficou perplexo com o pronunciamento do presidente da república, Jair Bolsonaro, a respeito da pandemia da covid-19 – doença causada pela transmissão do novo coronavírus. Exibido em rede nacional, o discurso comparava a doença que já matou milhares de pessoas pelo mundo a uma “gripezinha” e convocava brasileiros e brasileiras a sair às ruas, retomando suas rotinas.

Não temos dados concretos sobre o impacto das declarações do presidente – que, vale destacar, iam em desacordo às recomendações da OMS e de seu próprio ministério da Saúde – na quebra do isolamento social da população. Porém, a pergunta central que fica é: por que alguém provido de todas suas faculdades mentais escolheria acreditar na fala sem evidências de Bolsonaro, na contramão de dados e estatísticas e das pesquisas de cientistas e economistas por todo o mundo?

A resposta é simples e paradoxalmente complexa. Em um pronunciamento de poucos minutos, temos, desenhando-se na tela, um exemplo claro e estarrecedor de um mal que ameaça a democracia, a saúde e a vida – por isso mesmo, talvez, mais grave do que a própria pandemia. Quem poderia prever que, em meio a um cenário mundial de crises econômicas e políticas, o 2020 ficaria marcado por uma crise no âmbito da comunicação, o fenômeno da pós-verdade?

Seja nas redes sociais, na literatura, na TV, no mundo acadêmico ou na política, é possível identificar tendências que colocaram a subjetividade sobre um pedestal em detrimento da realidade, da ciência e dos valores comuns (A morte da verdade, Michiko Kakutani). A pós- verdade consiste em circunstâncias onde fatos subjetivos valem mais do que os objetivos. Em outras palavras, conferimos mais crédito a fatos ou notícias que nos despertam sensações do que àquelas passíveis de comprovações. Não acreditamos somente na verdade – acreditamos naquilo que queremos que seja verdade.

Bolsonaro foi à TV dizer o que todos, neste momento, gostariam de ouvir: está tudo bem. Explico: ninguém está confinado em casa por opção, tranquilo ou mesmo pouco angustiado num contexto de tantas incertezas e estatísticas desastrosas por todo o mundo. É confortante ver alguém que, pelo cargo que ocupa – e que, espera-se, saiba conduzir a situação -, venha a público dizer: é tudo exagero e estamos salvos do perigo.

O pronunciamento do presidente sugere que há ordem em vez de caos. E relaciona-se perigosamente com a prioridade concedida à emoção, e não à evidência, no mundo da pós- verdade. A fala de Bolsonaro constrói uma fortaleza positiva ao redor de suas próprias crenças pessoais (“eu com meu histórico de atleta”) – seus argumentos beiram uma mentalidade conspiratória – e encontra terreno fértil em um mundo de mudanças atordoantes.

Tanto na saúde pública como na política, a pós-verdade gera uma volatilidade espantosa. Se a verdade desabar como valor social, a continuidade de todas as práticas sociais que ela sustentou por anos é posta em perigo. É assim, por exemplo, que temos assistido ao surto de doenças outrora erradicadas e a propagação desenfreada das fake news.

“Quando se confia menos na investigação baseada em provas do que numa coleção de anedotas e se presta menos atenção à autoridade do que em teorias da conspiração, as consequências podem ser imprevistas e fatais”, diz Matthew D’Ancona em seu Pós-verdade. E quando temos a própria autoridade fomentando a propagação dessas teorias, as consequências surgem ainda mais rápidas e, de fato, fatais.

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Luana Sena é jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí.