É cedo para saber que cenário vamos encontrar depois da pandemia. Aliás, é difícil enxergar com precisão o fim dessa crise global. Pode demorar meses, anos. Ninguém tem certeza. O que parece ser consenso é que muitos quadrantes da vida social estão sendo transformados, talvez de forma irreversível. O jornalismo vem sendo impactado também, e os efeitos mais imediatos estão relacionados à sua sustentação financeira e ao processo de produção de notícias. A queda da atividade econômica fechou as torneiras das verbas publicitárias, causando demissões e cortes de salários, e existe a ameaça real de que alguns veículos de comunicação não sobrevivam em curto prazo. As medidas sanitárias restritivas afetaram as equipes e impuseram desafios práticos aos jornalistas na busca por informação. Tudo isso é importante e merece ser acompanhado. No entanto, tenho um receio imediato do que a covid-19 pode provocar no jornalismo: a aceleração do fim das redações.
O fim das redações não é uma previsão minha, mas não se pode negar que seja um efeito possível, embora eu deseje fortemente que não aconteça. O que se pode depreender é que há riscos éticos embutidos na extinção das redações, condições que podem ajudar a corroer ainda mais a credibilidade de meios e profissionais, e que podem rebaixar a qualidade dos produtos e serviços informativos.
Desmonte gradativo
Após o espalhamento mundial do surto, uma das primeiras medidas adotadas pelas chefias de jornalismo foi afastar profissionais com mais de 60 anos. O objetivo foi preservar os mais velhos, que compunham o estrato social estatisticamente mais vulnerável. Na sequência, outras ações se deram, agora de forma mais extensiva, sem atenção especial a faixas etárias. Alguns protocolos de biossegurança foram adotados, como o distanciamento entre repórteres e entrevistados e o uso de máscaras de proteção. Mas dois outros comandos mudaram a paisagem e a rotina das redações: a divisão das equipes em turnos de trabalho, de modo a reduzir aglomerações nos locais, e a liberação para jornadas em regime de home office. Combinados, os gestos esvaziaram as redações num movimento que pode apressar o processo de fragmentação e desmantelamento, já em curso.
É bem verdade que as grandes e barulhentas redações cederam lugar a ambientes mais assépticos, silenciosos e organizados desde meados dos anos 1990. A substituição das máquinas de escrever por computadores, a reorganização mobiliária e o enxugamento de equipes provocaram uma higienização ambiental nas tradicionais usinas de notícia. A proibição gradativa do cigarro e o confinamento dos espaços de convivência e sociabilidade domesticaram a fauna ruidosa e agitada.
A crise financeira das últimas décadas pressionou as empresas do setor a cortar custos, o que se traduziu na redução das plantas industriais e na dispensa de empregados. Sob o pretexto de modernização, novos maquinários e sistemas informáticos foram assimilados, permitindo a automação de certas tarefas e a extinção de algumas funções importantes no jornalismo. O resultado foi o apequenamento da redação como lugar essencial dessa atividade, mesmo que ela ainda represente simbólica e praticamente o pulso da produção contínua de informações.
Aumento da exploração
O meu temor é que a covid-19 torne mais agudo o processo de desmonte das redações, acelerando o fim desses espaços. Sob o pretexto da queda de receita e a necessidade de cortar mais despesas, o setor pode querer “incentivar” o teletrabalho, desobrigando-se de manter as estruturas anteriores. A asfixia do modelo convencional de redação causa dois desdobramentos imediatos: sobrecarga de trabalho e injustiça social.
Fora das redações e operando de suas casas, os jornalistas naturalmente excedem seus horários, alargando suas jornadas de trabalho. Sem as exigências de segurança laboral e sem as regras do local de trabalho, os profissionais adotam suas próprias rotinas e cronogramas que, invariavelmente, tendem a ser mais exaustivos. Se, antes, já faziam horas extras nas empresas, e nem sempre eram remunerados por elas, em home office os jornalistas estendem seu tempo dedicado ao trabalho, sem controle ou acompanhamento, o que impede de exigir as devidas compensações.
Ao mesmo tempo, quando as empresas incentivam o teletrabalho, transferem aos empregados alguns custos de produção que antes eram suas obrigações, como energia elétrica, internet, licenças de aplicativos, uso e depreciação de equipamentos, entre outros.
Sobrecarga de trabalho e injustiça social são duas faces do aumento da exploração dos trabalhadores pelas empresas, mas há um terceiro efeito do desmonte das redações e ele afeta justamente a ética jornalística.
Convívio social e ética profissional
Apressar o fim das redações pode significar uma maior fragilização ética do jornalismo. Isso porque as redações sempre funcionaram como “chão de fábrica” e “sala de estar”. É nelas que acontece a transformação da matéria-prima bruta (o dado) em produto de alto valor agregado (a notícia, a reportagem); é nelas que operam os jornalistas em suas estações de trabalho, seguindo escalas, hierarquia e produtividade, e adequando-se a ritmos de oferta e demanda. Mas é nas redações, também, que se dão os encontros, as reuniões, a convivência social entre os indivíduos envolvidos na operação cotidiana de informar.
Ao funcionar como “sala de estar”, a redação propicia a conversa, o diálogo e a troca de ideias. As decisões mais complexas e delicadas do fazer jornalístico são as de caráter ético, e elas são tomadas no âmbito das redações por editores, redatores, repórteres e produtores. É nesses espaços e ocasiões que argumentos são formulados, que consensos são construídos e cânones se sedimentam. Rituais profissionais são repetidos e galvanizados também. Práticas se modificam, padrões técnicos e éticos se cristalizam nesses espaços. A redação é, portanto, o lugar privilegiado para a emergência dos caldos culturais que irrigam e alimentam o jornalismo. É um berço de cultura, de identidade e de deontologia profissional.
A ética jornalística não é resultado exclusivo do indivíduo. Frente a dilemas cotidianos, um jornalista não mobiliza apenas seus valores íntimos para tomar decisões. Considera também as regras de ouro da profissão, os sentimentos e argumentos dos colegas de trabalho, as expectativas morais do público, a linha editorial da empresa… Enfim, uma série de fatores é levada em conta. A ética jornalística é também social, e espaços como as redações ajudam a fermentar princípios que orientam as ações práticas.
Como disse antes, a redação é “chão de fábrica” e “sala de estar”. Funciona como a sala dos professores numa escola, ambiente em que eles se cruzam, se encontram, assinam o ponto, trocam impressões, queixam-se, confraternizam e consolidam sua práxis. De modo igual, as redações permitem interação e convívio, mas também autoafirmação, fortalecimento grupal e determinação ética.
Apressar a fragmentação e a extinção das redações pode ter consequências éticas graves para o jornalismo. Se não mais contarmos com esses espaços de produção e reflexão ética, mais vezes as decisões serão tomadas individualmente, podendo aumentar os vieses e a margem de erros. Em alguns casos, as decisões que competem a jornalistas sairão de suas mãos para serem tomadas por terceiros, como os departamentos jurídicos, por exemplo. O medo de processos judiciais e o apego à burocracia advocatícia podem prevalecer sobre o imperativo ético de informar e a função pública do jornalismo. Os prejuízos à ética profissional e ao direito de ser informado são incalculáveis.
A pandemia pode catalisar o desmonte das redações e fragilizar ainda mais a atividade de informar. É preciso resistir e garantir as redações como espaços fundamentais da prática e da reflexão ética no jornalismo. Não se trata de nostalgia ou ranço passadista. Historicamente, o jornalismo praticado em circunstâncias coletivas tem se mostrado mais cioso, responsável e melhor. Redações não precisam ter acomodações enormes e estruturas caras, mas é fundamental que reservem as configurações de um ambiente poroso a novas ideias, dinâmico e constantemente oxigenado. Um ambiente como esse tende a transferir a mesma vitalidade com que produtos e serviços são concebidos, produzidos e distribuídos. Se não tivermos mais as redações como berço cultural e deontológico, perderemos condições importantes para o diálogo e a construção coletiva do entendimento. Quem ganha com isso?
Publicado originalmente no site objETHOS.
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Rogério Christofoletti é professor de jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS.