Depois de 30 de janeiro, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o surto do novo coronavírus como emergência pública internacional, as principais editoras científicas do mundo, como The Lancet, New England Journal of Medicine e Nature, decidiram compartilhar os estudos sobre o Covid-19 de forma gratuita. Ou seja, sem paywall, a obrigatoriedade de pagar para ler o conteúdo.
De lá para cá, a OMS subiu o alarme: de emergência para pandemia, classificação estabelecida no último dia 11 de março. Foi a vez, então, de os jornais tirarem o paywall de notícias relacionadas à doença, como o The New York Times e o Wall Street Journal, dos Estados Unidos, e o Público, de Portugal. No Brasil, os três principais periódicos do país, a Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S.Paulo, seguiram pelo mesmo caminho.
Compreender quando e por que paywalls são derrubados é tema de um estudo publicado em 2016 no International Journal of Communication. Os pesquisadores Mike Ananny e Leila Bighash, da Universidade de Southern California, listaram as justificativas mais comuns, entre as quais: informar o público em crises e emergências; aumentar a exposição de eventos planejados ou ocasiões especiais; aumentar audiência e experimentar o que é o sistema de paywall estabelecido como modelo de negócio das publicações. Para eles, os casos de suspensão de paywall refletem um encontro entre as lógicas comerciais e democráticas das empresas.
“Quando organizações jornalísticas derrubam paywalls – ou decidem não fazê-lo – para apenas algumas partes de campanhas eleitorais, certas emergências, geografias particulares, conteúdos específicos ou parceiros publicitários selecionados, mostram como o poder de seletivamente decodificar notícias reflete o poder de definir o escopo, a duração e a significância de eventos e círculos eleitorais – um poder que somente organizações com reservas econômicas […] possuem”, escrevem (itálico deles, tradução nossa).
A gratuidade de acessar determinado grupo de notícias relacionadas ao Covid-19 traz questões sobre seus efeitos. Por exemplo, a audiência aumentou? Mais pessoas acessaram os sites dos jornais? Quanto tempo elas passaram lendo notícias? Delas, quantos são não assinantes? Quantos tornaram-se assinantes? Em que medida os leitores, assinantes ou não, mudaram de hábito? Essas são algumas perguntas que deverão ser respondidas a partir da experiência atual.
Onde nunca houve paywall
Manter o leitor informado pode levá-lo a adotar medidas de prevenção e compreender a gravidade da situação. Os leitores, porém, são pequena parcela da população brasileira. Isso não significa que a outra parcela não se informa, mas o faz por outros meios, como canais abertos de televisão, rádio ou redes sociais. Plataformas como Facebook, Twitter e YouTube disseram atuar para combater a disseminação de conteúdos falsos relacionados ao vírus. A ação, contudo, não impede que esses materiais mentirosos sejam criados e circulem pelas redes. E é justamente aí que mora o grande perigo.
O WhatsApp talvez seja a plataforma mais propícia para a divulgação livre de fake news. Está circulando um vídeo em que Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do Grupo Record, diz que não é preciso se preocupar com o coronavírus porque é uma tática de Satanás, que trabalha com o medo, o pavor e a dúvida.
O “bispo” responsabiliza o jornalismo e os veículos de imprensa por disseminar o pavor em relação à doença por motivos financeiros. “O pavor que a mídia tem usado para levar as populações, as nações, apavoradas com respeito a esse vírus, coronavírus. Por trás de toda essa campanha do coronavírus existe um interesse econômico. E onde há interesse econômico, aí tem.”
Macedo recomenda outro vídeo, do patologista Beny Schmidt, professor da Universidade Federal de São Paulo, que ignora a literatura científica e os estudos da Organização Mundial da Saúde ao afirmar que o vírus não é letal e não faz mal a ninguém. “A gente morre de tantas coisas, mas de coronavírus a gente não morre”, diz. A fala mostra que títulos acadêmicos e profissionais nem sempre são garantia de informação correta.
Depois do vídeo de Schmidt, Macedo diz: “Fica aí o recado do doutor, que é um cientista e que tem fundamentos científicos para falar o que ele falou com certeza”. Em nome de um suposto embasamento científico, um bispo recorre ao cientista para falar o que quer, não o que os fatos indicam. Isso é uma mostra de como a ciência (ou parte dela) pode ser cooptada para justificar interesses e falas de pessoas influentes em seu meio.
Os desafios para uma comunicação efetiva do Covid-19, para que as pessoas entendam a gravidade da situação e adotem medidas preventivas, crescem quando o líder de uma das maiores igrejas evangélicas do país e dono de uma emissora de televisão fala bobagens amparado em outras bobagens, essas ditas por um professor acadêmico.
A bobagem, aliás, tem espaço de sobra no país, visto que são proferidas dia sim, dia também, por um presidente que esteve em contato com pessoas infectadas pelo vírus, contraria as indicações médicas ao ir a um evento público e chama de “histeria” as medidas adotadas para combater a transmissão do coronavírus.
A queda dos paywalls em tempos de pandemia é decisão importante para que as notícias apuradas e embasadas proliferem mais que mentiras e boatos. Ela talvez dê ressonância ao conteúdo jornalístico diante da concorrência do bispo e do presidente, que influenciam milhões de pessoas pelo país. A dúvida central, cuja resposta pode trazer lições importantes para a próxima crise mundial de saúde, é: se nem a gratuidade de matérias sobre coronavírus aumentar o número de leitores, o que o fará? A sobrevivência do próprio jornalismo depende de como vamos atravessar esse muro.
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Daniel Dieb é jornalista de ciência, saúde e tecnologia. Escreve para o UOL e fez parte do programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha de S.Paulo. É colaborador da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).