O diplomata americano e prêmio Nobel da Paz, Henry Kissinger, costumava dizer: “Na guerra dos sexos, nunca haverá vencedor, pois há muita confraternização com o inimigo”. Talvez uma analogia semelhante possa ser feita entre cientistas e jornalistas. Não porque os dois grupos profissionais desgostem um do outro, muito pelo contrário. Afinal, os primeiros gostam de explicar e, os segundos, de entender.
Trata-se de uma relação cercada de boa vontade. Porém, em tempos de pandemia, em que a covid-19 ampliou em algumas ordens de magnitude minha interação com profissionais da imprensa, ficou muito claro para mim que operamos em comprimentos de onda tão diferentes que é impressionante essa interação funcionar às vezes. Nestas linhas, tentarei explicar um pouco a parte que me cabe, a partir da cabeça de um pesquisador, na esperança de que, futuramente, os leitores deste guia consigam realizar seu trabalho com menos sofrimento.
Como se faz um cientista?
Todo cientista começa como um otimista, mas rapidamente se torna um cínico. O cientista é forjado na frustração. Seu treinamento é o fracasso recidivo. Isso o ensina que a realidade é irredutível e impiedosa e que a única maneira de conquistá-la é o escrutínio desapaixonado, sistemático e rigoroso. Para penetrá-la, pesquisadores continuamente confrontam dados parciais e contraditórios na intenção de extrair um grama de paradigma por tonelada de contradição.
Por conta dessa dificuldade, é inconcebível para um pesquisador a admissão de dados questionáveis. Isso poria o processo todo a perder – portanto, qualquer percepção de negligência é fatal para esse profissional. Os únicos patrimônios do pesquisador são sua criatividade e sua credibilidade. Assim, não há vergonha em apresentar menos. Por outro lado, apresentar dados duvidosos é a desgraça total, o ostracismo.
Operar nesse nível de exigência tem seu preço: um foco quase obsessivo e a insegurança. Por mais que esteja seguro de seu trabalho, todo cientista sabe que é possível e está sempre apreensivo com a possibilidade de ser contestado. Henry Wortis, diretor do programa de pós-graduação em imunologia da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, costumava sintetizar esse sentimento na seguinte frase: “Quando você apresenta o seu trabalho, ninguém acredita nele, só você. Quando você o publica, todos acreditam, menos você”.
Esse código de conduta é tão dominante que o pesquisador divide o mundo em duas categorias:
a) O que eu sei: que é sempre ínfimo, mas serve de base sólida para decidir;
b) O que eu acho que sei: que é amplo, mas só serve para gerar hipóteses.
Seu trabalho é descobrir maneiras criativas e irrefutáveis de transformar o “acho” em “sei” a partir dos métodos empíricos.
Poucos elementos refletem melhor esse estado mental que a linguagem científica. A comunicação científica não admite divagação, trivialidade ou excesso. Cada palavra é dolorosamente escolhida a dedo como um míssil teleguiado, imbuído de significado preciso, apontado diretamente para a compreensão de seu interlocutor. Ela não admite interpretação ambígua ou genérica e incorpora em si a qualidade da evidência que a sustenta. Por exemplo: quando um pesquisador fala “estudos demonstram”, ele quer dizer que pode substanciar a afirmação com evidência irrefutável. Se a frase escolhida for “a evidência sugere”, isso significa que sua resposta não é definitiva. Por outro lado, se você ouvir: “está provado”, desconfie. A maior parte dos pesquisadores teria um ataque grave de urticária antes de usar esta palavra.
Na ciência, “prova” representa algo tão definitivo que praticamente possui status divino, ninguém pode alcançá-la. Seu poder é tamanho que seus sacerdotes nem conseguem mencioná-la. Basta dizer que, após 100 anos resistindo aos testes mais rigorosos a que uma teoria já foi submetida, a própria teoria da relatividade ainda não é considerada provada.
Por que pesquisadores não dão respostas diretas?
Alguns de vocês já viveram uma situação na qual seu entrevistado corrigiu sua pergunta? Ou a respondeu com um discurso interminável de 40 minutos aparentemente desconectado? Isso acontece porque um cientista é basicamente um questionador profissional e forjar perguntas perfeitas é sua atividade.
Como a natureza é complexa e intrincada, nossa especialidade é quebrá-la em pequenos pedaços e definir um experimento para cada um, nas seguintes condições:
a) A metodologia é investigativa e, por conseguinte, os resultados serão inquestionáveis;
b) A resposta final consistirá em um “sim” ou um “não”.
Um projeto científico essencialmente consiste num alinhamento sequencial de várias dessas perguntas, de modo que, ao final, teremos um quadro descritivo amplo e preciso do assunto em questão.
Por sermos doutrinados assim, frequentemente pensamos durante um questionamento: “Essa é a pergunta errada”, ou “Esse é o modo errado de abordar este assunto”, e nossa resposta fatalmente incluirá esse aspecto. Portanto, ao fazer perguntas, caro jornalista, tenha em mente que a resposta do cientista sempre trafegará por quatro níveis:
a) Qual o estado da arte na discussão científica sobre este tópico?
b) O que posso dizer que é irrefutável e sobrevive a qualquer escrutínio?
c) O que posso responder que é interessante, mas não é irrefutável?
d) O que é realmente interessante, eu gostaria que fosse verdade, mas nem sequer toquei?
Então, o pesquisador, primeiro, passará pelo nível A e fará 30 minutos de palestra sobre tudo o que está em discussão naquele campo. Depois, no nível B, você ouvirá 15 minutos de uma síntese dos fatos com os quais os cientistas de maior credibilidade no campo concordam. No nível C, uma peroração de 20 minutos sobre as ideias interessantes de pesquisadores marginais que causam controvérsia, mas nunca foram provadas, e, por fim, no nível D, mais 30 minutos sobres assuntos que aquele pesquisador gosta, tem várias ideias, mas nada para mostrar. Ou seja, uma pergunta, quase duas horas de resposta e o que você tem para colocar no papel? Pouco. É muito castigo, não? Que o diga o coitado que me perguntou: “O que o senhor acha da covid-19?”. Ele ainda deve estar se recuperando de minha resposta. Como melhorar isso?
Para sermos práticos, ilustremos com um exemplo. Veja a seguinte pergunta a um pesquisador do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, ou, no bom português, Painel Intergovernamental de Mudança Climática) sobre o suposto aumento na frequência de furacões categoria 5 atingindo a costa americana neste século: “O aquecimento global é a causa desse fenômeno?”. O autor da questão acabou de perder o resto do dia. Como a pergunta é aberta, a resposta exata precisa ser contextualizada. Então, o pesquisador começará explicando a diferença entre a coleta dos dados hoje e nos anos 1970, quando se começou a registrá-los, e por que essa é a razão pela qual você não pode dizer isso. É involuntário, não há como evitar.
Note que a responsabilidade ou não do furacão no aquecimento global acabou de se tornar irrelevante. Importante, agora, é explicar por que metodologicamente não podemos afirmar isso. Qualquer outra resposta seria imprecisa e permitir imprecisão é o pecado capital da ciência. Negacionistas climáticos sabem disso e se aproveitam para distorcer o sentido das respostas.
Outro modo de perguntar seria: “Considerando-se os modelos atualmente validados, o aumento de 0,5 grau nas águas do oceano Atlântico justifica a maior frequência de furacões classe 5 que atingem a costa da América do Norte?”.
Ou, em outro exemplo: “Baseado na experiência chinesa, na experiência coreana e no número de pessoas testadas no Brasil, quantos infectados assintomáticos pela covid-19 circulam entre nós sem diagnóstico?”. E, a seguir: “Desta população, quantos apresentarão sintomas nos próximos dias e quantos precisarão de atenção hospitalar?”.
Este é o modo como essas perguntas seriam formuladas num congresso ou seminário. Como a premissa da precisão já está satisfeita, a resposta já está delimitada e não tem como extravasar os limites demarcados. Ela pode ser simplesmente “sim” ou “não”, ou uma percentagem limpa e citável. Uma resposta clara e direta abre a possibilidade de uma nova pergunta. Dá trabalho, sem dúvida, mas menos que destrinchar 30 minutos de retórica incompreensível. Sempre que você deixar o flanco aberto numa questão, está montando uma armadilha para si mesmo. Por outro lado, se estabelecer limites claros, obterá a melhor resposta que o campo pode oferecer.
Eu poderia continuar ad infinitum nesse tema. Esse choque de culturas entre cientistas e jornalistas é infinitamente interessante, mas acho que já basta para a primeira vez. Espero que seja útil e facilite a vida de repórteres em entrevistas e coletivas de imprensa.
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Eduardo Finger é médico clínico geral, imunologista e coordenador do Laboratório de Pesquisa Experimental do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Também é divulgador de ciência e (orgulhoso) membro da RedeComCiência.