Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Coronavírus, a primeira pauta pública global, revela a falência do modelo neoliberal

(Foto: Getty Images)

Pela primeira vez na história da humanidade, a agenda pública de todo o planeta possui uma única pauta principal: a pandemia do novo coronavírus. Se assistirmos aos noticiários, participarmos de rodas de conversa ou acessarmos as redes sociais, em qualquer um dos quase duzentos países atualmente existentes, facilmente vamos perceber que o assunto mais comentado é o coronavírus.

Em outras épocas, a maioria das enfermidades ficava restrita a uma pequena área geográfica e, devido ao pouco alcance dos meios de comunicação, as pessoas dificilmente tomavam conhecimento sobre surtos e epidemias ocorridos em outros lugares. No entanto, tudo mudou com o temível coronavírus.

Por causa do grande fluxo de pessoas em âmbito global, o vírus rapidamente extrapolou as fronteiras chinesas e se espalhou pelo mundo. Itália, Irã e Espanha são, por enquanto, os países mais afetados. Já a possibilidade de comunicação instantânea entre praticamente todos os pontos do planeta permite que qualquer indivíduo tenha o devido conhecimento sobre as mazelas causadas pela pandemia do coronavírus, já considerada “a maior crise contemporânea da humanidade” e “uma doença sem paralelos na história recente”, conforme escreveu o repórter de saúde e ciência da BBC, James Gallagher.

Além das dezenas de milhares de óbitos e enfermos mundo afora, a pandemia provocou o cancelamento de eventos, adiamento de torneios esportivos, suspensão de aulas, proibição de reuniões, mudanças de hábitos, esvaziamento de pontos turísticos e obrigou milhões de indivíduos a ficar em quarentena. A profecia feita por Raul Seixas nos anos 1970 se concretizou: “A Terra parou”.

Para se ter uma ideia sobre a gravidade da situação, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que o coronavírus tem causado uma crise que definirá nossa geração. “Ela [a crise] testará nossa confiança na ciência e coloca em xeque a relação entre lideranças políticas e seus cidadãos, justamente no momento em que essa relação está corroída”, advertiu Jamil Chade em artigo para o El País.

Chefes de Estado como Donald Trump e Angela Merkel já comparam os esforços realizados no combate ao coronavírus aos desafios enfrentados durante a Segunda Guerra Mundial, maior conflito armado da história. Aqui no Brasil, Jair Bolsonaro, ao contrário de outros líderes, parece não estar compreendendo o momento crítico pelo qual passamos. Além de ter convocado seus seguidores a ir às ruas no dia 15 de março, contrariando todas as indicações de profissionais da saúde, o presidente chegou a afirmar que a pandemia do coronavírus é “histeria”, “fantasia” e “gripezinha”. Nessa mesma linha irônica, o presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, aconselha “vodca e sauna contra o coronavírus”, que, segundo ele, “não é tão preocupante assim”.

De maneira geral, podemos dizer que os tradicionais veículos de comunicação de massa (revistas de grande circulação, jornais impressos e emissoras de televisão) têm desempenhado importantes papéis na conscientização da população sobre nossa grave situação. E, o que é mais importante: por mais delicados que tenham sido os últimos dias, não temos visto na mídia brasileira alarmismos desnecessários (a exceção fica por conta dos programas sensacionalistas).

Ao exibir reportagens sobre o trágico exemplo italiano – com o grande número de óbitos, que já ultrapassou o da própria China -, os principais canais do Brasil nos alertam sobre o risco de não se tomarem as medidas necessárias para conter o avanço do coronavírus (o que significa evitar aglomerações e, na medida do possível, permanecer em isolamento). Já as matérias de telejornais sobre as experiências bem-sucedidas de combate ao vírus em países como Singapura e Coreia do Sul trazem a esperança de dias melhores.

Entretanto, o que a mídia muitas vezes não mostra são as lições que duramente temos aprendido com a pandemia do coronavírus. A primeira, e mais óbvia, diz respeito à importância do poder público para gerir crises como a atual, em contraste com a ineficácia do mercado, voltado apenas para o lucro e alheio aos dramas humanos. Nesse sentido, foi emblemática a imagem de um desolado Paulo Guedes anunciando que o governo não poderá cumprir sua meta fiscal por causa dos “gastos extras” que serão utilizados na contenção do coronavírus. Como bem enfatizou Afrânio Silva Jardim, docente da UERJ, “agora os ‘liberais’ estão percebendo a importância do Estado, seja no aspecto econômico, seja nos aspectos médico e sanitário. O ‘deus mercado não resolve estas questões”.

É fato que todos somos vulneráveis ao coronavírus, pois a pandemia não respeita fronteiras, classes sociais, etnias ou credos. Porém, seria ingênuo não levar em consideração que, em um país altamente desigual como o Brasil, onde os resquícios da escravidão insistem em nos assolar, a população pobre, espremida em transportes públicos superlotados e aglomerada em comunidades carentes sem o mínimo de infraestrutura adequada, certamente representa o setor mais desprotegido.

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a economista Tereza Campello alertou que, quando a pandemia do coronavírus chegar às comunidades carentes, “vai ser uma tragédia, um genocídio, [pois] os idosos pobres não têm cuidadores, não têm áreas isoladas nas suas casas, não têm alimentação especial”. Além do mais, já é bastante claro que o desmonte da saúde pública promovido pelos governos Temer e Bolsonaro, seguindo a cartilha neoliberal, além de não resolver os problemas econômicos do país, mostrou-se uma alternativa totalmente equivocada.

Outra lição relacionada à pandemia diz respeito ao modelo de desenvolvimento econômico-espacial adotado no Brasil, especialmente a chamada “macrocefalia urbana”, que, ao concentrar a maior parte da economia do país nas grandes metrópoles, leva consequentemente à grande concentração populacional em centros urbanos, facilitando a disseminação de vírus como o corona. Não por acaso, a maior parte dos casos registrados até o momento estão nas duas maiores cidades do país: São Paulo e Rio de Janeiro.

A ameaça representada pelo coronavírus também tem demonstrado a necessidade urgente de maiores investimentos em ciência e tecnologia. A minimização dos efeitos nocivos de pandemias que tanto nos afetam não surgirá de líderes neopentecostais e de suas curas espirituais, mas de pesquisas sérias, realizadas, principalmente, em laboratórios de universidades públicas (centros de “balbúrdia”, segundo o ministro da Educação Abraham Weintraub). A razão sempre será preferível ao obscurantismo.

Já as novas mídias têm facilitado as comunicações entre as pessoas obrigadas a ficar em quarentena, minimizando assim os efeitos colaterais do isolamento social, fator importante para a manutenção de nossa saúde mental. Em contrapartida, o espaço virtual, sobretudo o WhatsApp, tem sido um terreno fértil para a difusão em larga escala de fake news.

O boato de que havia sido promulgada uma medida provisória que determinava a suspensão da aposentadoria dos idosos que saíssem às ruas em meio à pandemia do coronavírus gerou pânico entre várias pessoas de idade avançada, receosas com a possibilidade da perda de seus rendimentos mensais. Não obstante, a xenofobia contra chineses esteve presente em fake news compartilhadas no Facebook que insinuavam ser o coronavírus uma arma biológica inventada por Pequim para dominar a economia global.

Por fim, é fundamental lembrar que, ao contrário do que os teóricos do status quo apregoam, nosso sucesso evolutivo não está relacionado ao egoísmo, mas à cooperação. Somente pela união entre iguais o Homo sapiens, frágil primata bípede, pôde enfrentar seus poderosos e fortes adversários para que, milhares de anos depois, chegássemos onde estamos. E certamente também será por meio da solidariedade coletiva, e não pelo individualismo neoliberal, que iremos vencer a luta contra o coronavírus.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (em processo de edição), ambos pela editora CRV.