Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Coronavírus: o pânico chegou a Berlim

(Imagem: Reprodução youtube de Heute-Show)

Acostumados com guerras e motins, e tendo construído uma cidade dos escombros, berlinenses são avessos a ladainhas e pânico em relação a acontecimentos dos quais não se tem controle. Em 2015, com a crise dos refugiados que levou 1 milhão de pessoas a passar pela fronteira da Alemanha, levando o aparato administrativo e logístico ao seu maior desafio desde a reconstrução da cidade destruída na Segunda Guerra Mundial, Berlim teve seu maior desafio depois da queda do Muro.

Até mesmo nos anos de 2015, 2016 e 2017, quando o mundo estava em estado de alerta e/ou estupefação com o terrorismo, Berlim continuava teimando em não ceder sua liberdade de ir e vir e muito menos abdicar de sagrados rituais diários. Esse talento em minimizar acontecimentos e conflitos situados fora do nosso controle está intrínseco no DNA dos berlinenses.

Enquanto as pautas de notícias tinham foco temático na China e, logo na sequência, na Itália, os berlinenses viam o coronavírus como algo bem longe de sua realidade. As reportagens eram esporádicas nos noticiários prime time. Somente pela metade de fevereiro foi se alastrando para todos os horários. O primeiro sinal de gravidade teve início com, até aquele momento, o mais improvável acontecimento na longa história de Berlim; o cancelamento da maior feira de turismo do mundo, a ITB, que acontece anualmente em março. Como o poder de decisão de grandes eventos fica com cada bairro, que tem sua prefeitura, o distrito de Charlottenburg-Wilmersdorf decidiu, em cima da hora, adiar a feira. O desdobramento logístico para expositores e membros do setor ainda é incomensurável. O cancelamento da ITB foi a quebra da barreira em cancelar eventos de grande visibilidade e peso financeiro. No dia 9, os políticos das chamadas Länder (regiões administrativas, ao todo dezesseis), com autonomia de decisão sobre escolas e eventos de grande porte, iniciaram suas conversas sobre cancelar os jogos de futebol e realizá-los sem torcedores.

Desde o início de março, sob a hashtag #Hamsterkäufe (armazenamento de estoque, em tradução livre), as redes pipocavam com comentários de zoeira. Os programas de comédia também não deixaram por menos.

Os artigos mais cobiçados e os primeiros a desaparecer das prateleiras foram macarrão e papel higiênico. No dia 6, o âncora do programa de comédia de maior audiência resumiu: “Isso é bem alemão! O apocalipse bate na porta e o fulano diz: ‘Eu preciso de papel higiênico!’ Se o mundo acabar, os alemães terão que soltar um barro antes”.

Dinâmica vertiginosa

Depois de criticas do tabloide Bild por “falta de coordenação geral” por parte de Merkel na luta contra o coronavírus, a chanceler reagiu. Merkel convocou uma coletiva juntamente com seu ministro da Saúde, Jens Spahn. Com esse gesto, ela sublinhou a seriedade na qual seu gabinete trata a questão.

Merkel participou da coletiva também para tirar seu ministro do alvo da imprensa, que considera que ele fracassou ao não reagir rapidamente depois do estouro do vírus na China. Para sublinhar a gravidade do momento, Merkel protagonizou a coletiva. “Eu acho muito doloroso não poder dar a mão para cumprimentar, algo que é intrínseco na nossa cultura”, disse o ministro. Merkel acrescentou: “Mas pode-se substituir através de um olhar prolongado e acompanhado de um sorriso”. Quatro dias depois, a chanceler apelou ao alemães “evitar qualquer tipo de contato social”.

Menos de uma semana depois, foi anunciado pelo Senado de Berlim o fechamento de todos os locais de administração pública (teatros, museus, bibliotecas e piscinas públicas), além da maioria das escolas e jardins de infância a partir do dia 17. A maioria das Länder, regiões como Saar e Renânia do Norte-Vestfália, já havia decidido pelo fechamento. Somente pais que têm “funções especiais” (policiais, médicos, enfermeiros, bombeiros) poderão continuar levando seus filhos para os jardins de infância.

Não há mais uma noite em que, depois do principal noticiário do país, o Tagesschau (Espelho do Dia), não haja um programa de 15 minutos para atualizar as informações. Mas a ficha ainda não caiu de todo. De fato, a partir do dia 17 a vida pública em Berlim estará perto do zero. Ao contrário da Espanha, que terá policiais nas ruas para controlar quem está nela e porquê, além de mandar circular quaisquer grupos com mais de cinco pessoas, Berlim confia no bom senso de seus moradores. Já na sexta-feira, às 16 horas, o centro turístico e de comércio Potsdamer Platz parecia uma cidade fantasma.

O total antagonismo desse cenário foi o de sábado, nos supermercados. Pessoas com carrinhos abarrotados entulhavam um número irracional de papel higiênico. Num supermercado da rede Edeka localizado no centro de Berlim, já não havia cebola, nem fermento, nem pão. Em tantos outros, as prateleiras se mostravam vazias. Depois de um longo dia de tarefas, cheguei no final da tarde e o supermercado parecia um fim de feira. Os berlinenses são comedidos, mas também acostumados com guerras. O povo alemão, como um todo, sabe bem o que é passar fome e frio. A ministra da agricultura, Julia Klöckner, do partido CDU (o mesmo de Merkel) declarou em entrevista não ser necessário estocar mercadoria e garantiu que os produtos serão repostos, mas ressaltou a necessidade de uma autorização para que as lojas abram aos domingos. Mas a reação ao pedido da ministra foi vista no sábado. Um cenário apocalíptico. Os mais céticos dos moradores de Berlim, entre eles a autora deste texto, também sucumbiu à necessidade de estocar alimentos. “Vem na segunda bem cedo que você encontra macarrão”, me disse o senhor Gabriel, de uma filial de uma grande rede de supermercados perto da minha casa.

Reação tardia

Para o ministério da Saúde, a ficha demorou a cair. O ministro Spahn achou que o coronavírus iria passar ao largo da Alemanha. Somente no dia 11, com a coletiva juntamente com a chanceler depois de várias críticas da imprensa à pasta, o gabinete de Merkel se juntou numa força-tarefa. Porém, não há uma pessoa que acredite que os catorze dias de quarentena irão livrar a Alemanha do cenário que se vê atualmente na Itália.

Em 16 de março, o Corona-NewsBlog do jornal Berliner Zeitung divulgou dados concedidos pelo senador do Interior em reunião no parlamento berlinense: 238 cidadãos contraíram o vírus e duas pessoas se encontram na UTI. Ainda segundo o blog, 95 policiais e 31 bombeiros foram encaminhados à quarentena.

Fechamento de fronteiras

Nos noticiários de domingo (15), a Europa mostrou sua falta de unidade em tempos de crise, em tempos de cólera. Sucessivamente, os países estão fechando suas fronteiras. A Áustria, a Alemanha e a Polônia agendaram para o último fim de semana. Em coletiva de imprensa no ministério do Interior em Berlim, Horst Seehofer, o ministro do partido CSU, garantiu que o transporte de alimentos e remédios continuará liberado. Mesmo essa fala de Seehofer e o apelo da ministra não irão dizimar nem minimizar o medo que se alastra cada vez mais e nos exibe um cenário apocalíptico. O próprio Twitter alemão já criou a hashtag #coronapocalypse.

Na noite de domingo (15), no programa da âncora Anne Will no canal 1, o conglomerado da emissora ARD, um dos mais respeitados virologistas do país, foi o único a ter uma visão realista do quadro, deixando o ministro das Finanças com cara de bobo. Kukule foi aclamado o “cara da noite” nas redes sociais, com a hashtag #AnneWill.

As máscaras de proteção e os leitos extras para as UTIs ainda estão sendo abrigados, declarou o ministro-presidente da Renânia do Norte-Vesfália, o mesmo que tem ambições em herdar o cargo de chefe do partido de Merkel, o CDU. Esse seria o momento para que ele mostrasse serviço no quesito “administração de crises”, mas o virólogo desarma toda a sua retórica baseada somente em justificativas e autoelogio.

A imprensa na Alemanha, em sua maioria, está fazendo jus ao momento mais inusitado das últimas décadas. O tabloide Bild é o que planta mais medo num país já amarrado por ele. O que pode parecer um paradoxo: de um lado, rejeitar em sucumbir ao pânico e, de outro, sair comprando o supermercado todo como se não houvesse amanhã é um exato complemento da complexidade desse povo.

Bolsonaro, Trump & coronavírus

A imprensa alemã noticiou que o presidente americano Donald Trump teve que fazer um teste do vírus devido ao assessor do presidente brasileiro Bolsonaro, que deu positivo.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.