No Brasil, os últimos dias foram marcados por atitudes presidenciais destoantes da realidade mundial, para dizer o mínimo. O país se encontra em momento preocupante: em curva ascendente de contaminação pela covid-19 (novo coronavírus), há ainda uma estarrecedora falta de entendimento da gravidade por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, que insiste em se referir ironicamente ao vírus como uma simples “gripezinha”, supostamente inofensivo para seres humanos com “histórico de atleta”. Até o momento, 30 mil pessoas morreram em todo o mundo em virtude da infecção e mais de 600 mil foram infectadas (100 mil casos apenas nos Estados Unidos).
Em um dos mais recentes episódios de estupidez, o presidente proferiu a seguinte declaração aos jornalistas, ao voltar a defender o fim do que considera uma “histeria generalizada”, apelando para a retomada da normalidade da economia no país: “Eu acho que não vai chegar a esse ponto [a situação dos Estados Unidos, novo epicentro de coronavírus no mundo, superando a China]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajudam a não proliferar isso daí”.
Há dois pontos centrais nos recentes discursos do presidente Jair Bolsonaro que devem ser problematizados: o primeiro diz respeito aos constantes ataques direcionados aos governadores e prefeitos para que abandonem imediatamente o cenário que chamou de “terra arrasada” e ponham fim ao isolamento da população – ele mesmo desrespeitou recomendações internacionais ao cumprimentar apoiadores que promoviam atos em favor do governo, no dia 15 de março. Vale lembrar que há certa nebulosidade em relação aos exames que atestam a contaminação ou não do presidente, embora grande parte de sua comitiva tenha contraído a doença em viagem aos Estados Unidos, no início de março.
Depois de todos os contextos que podem servir de experiência ao Brasil no enfrentamento do novo coronavírus, é indiscutível que a flexibilização do isolamento populacional provoca trágicas consequências, como pode ser observado no caso de Bergamo, cidade de 1,1 milhão de habitantes localizada na região da Lombardia, no norte da Itália, que viu seu sistema de saúde ruir após seus gestores privilegiarem o funcionamento da economia simultaneamente ao aparecimentos dos primeiros casos.
De acordo com Giorgio Gori, prefeito de Bergamo, e um membro do executivo da Organização Mundial da Saúde, uma partida da Liga dos Campeões entre Atalanta e Valência realizada em 19 de fevereiro no Estádio San Siro, em Milão, teria sido decisiva para a exposição de cerca de 40 mil torcedores à covid-19. Os primeiros casos de contaminação no país surgiram oficialmente apenas quatro dias depois. No Brasil, é importante ressaltar que, em meio à pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde, as partidas de futebol continuaram sendo realizadas normalmente, reforçando a visão da Confederação Brasileira de Futebol sobre o jogador-mercadoria. Com as constantes pressões externas e protestos por parte de jogadores e comissões técnicas dos clubes, houve um afrouxamento das regras para realização das partidas, primeiro com a proibição de público nos estádios e, posteriormente e muito demoradamente, com a paralisação completa dos campeonatos estaduais e nacionais em todas as modalidades.
Ainda na Itália, o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, reconheceu, em 26 de março, que falhou ao apoiar a campanha “Milão Não Para”, estimulando moradores da cidade a prosseguir com suas atividades econômicas e sociais naturalmente durante a pandemia do novo coronavírus, uma proposta bastante similar à defendida pelo presidente brasileiro. A campanha “Milão Não Para” virou hashtag em 26 de fevereiro, quando a região da Lombardia (onde Milão está localizada) tinha 258 casos confirmados pelo vírus e doze mortes em todo o país. Atualmente, a província é a mais atingida pela covid-19. Na sexta-feira, 27 de março, a Itália registrou novo e trágico recorde em mortes diárias, com 969 óbitos. Atualmente, o país já contabiliza 10 mil mortes, quatro vezes mais que a China.
O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em rede nacional, no dia 24 de março, quando discursou orgulhosamente contra as recomendações da OMS e outros diversos especialistas e em favor de seus achismos e estatísticas ilusórias, serviu apenas para comprometer as estratégias e medidas que já vêm sendo adotadas e aplicadas por governadores, prefeitos e secretários estaduais e municipais de saúde em todo o país, a exemplo do fechamento das escolas, paralisação de empresas públicas e privadas – com exceção daquelas que oferecem serviços indispensáveis à população -, fechamento de locais e atividades públicos para conter a concentração de grandes aglomerações, entre outros.
As ações de isolamento se mostraram decisivas em países como a China, que conseguiu maior controle na transmissão do vírus. E, provavelmente por um longo tempo, tal estratégia será nossa única arma efetiva. Segundo anúncio do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, quatro diferentes medicamentos estão sendo testados e, até que se possa comprovar cientificamente sua segurança e eficácia, a população mundial aguardará ao menos de doze a dezoito meses para a sua liberação e aplicação. Por sua vez, no Brasil, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, indicou em 20 de março que os próximos meses serão os mais difíceis desde os primeiros casos de transmissão do vírus no país, com larga intensificação dos casos de infecção. Portanto, por ora, que alternativas temos senão o rigoroso confinamento e os cuidados redobrados com a higienização de nossos corpos e lares? Com as previsões de ascensão do vírus que parte do próprio ministério da Saúde brasileiro, qual base concreta referencia o discurso do presidente da República, de retomada integral das atividades cotidianas da população?
Outra afirmação falsa que nasce do espetáculo grotesco promovido por Jair Bolsonaro é a perversa insinuação da conexão entre esgotos e produção de anticorpos, como se a ausência de saneamento básico nas regiões mais pobres do país corroborasse para uma constituição física e biológica mais resistente às infecções nos brasileiros. Pelo contrário, o que o presidente não sabe (ou não se importa) é que, como resultado dessa condição que aflige milhares de brasileiros todos os dias, tem-se a larga proliferação dos casos de dengue, zika, chikungunya e diarreias, sendo esta última uma das principais causas de morte, especialmente em crianças. Outras doenças que também podem ser citadas, derivadas da exposição à urina de animais, principalmente ratos, são a cólera, hepatite A e leptospirose.
Uma pesquisa liderada por Denise Kronemberger para o Instituto Trata Brasil avaliou a relação entre saúde e saneamento básico nos 100 maiores municípios brasileiros a partir de um recorte temporal que vai de 2008 a 2011. Entre vários resultados obtidos, uma das conclusões constatou que, em 2010, os baixos índices de coleta de esgoto foram acompanhados por altas taxas de internação por diarreias em sessenta das 100 cidades estudadas. Nas dez localidades mais atingidas, apenas 29% da população era atendida por coleta de esgoto, enquanto entre as vinte cidades menos atingidas pelas internações a coleta de esgoto estava na casa dos 78%.
Em 2016, segundo dados do IBGE, houve 166,8 internações hospitalares por 100 mil habitantes no país para tratamento de doenças relacionadas à falta de saneamento ambiental adequado, contabilizando quase 350 mil internações. Um ano depois, a OMS reforçou, em relatório, que 88% das mortes por diarreia no mundo são causadas pelo saneamento inadequado. Desse montante, 84% são crianças.
Com base nos breves dados apresentados anteriormente, não é difícil imaginar, por exemplo, o desastroso impacto do novo coronavírus nas favelas brasileiras, com sua ampla ausência de condições higiênicas adequadas para o combate da doença, como alertam diferentes líderes comunitários em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Por fim, as sucessivas aparições públicas e declarações minimamente controversas de Jair Bolsonaro representam, mais que sua inabilidade de governar, um pouco do perfil do Estado brasileiro que não nasceu com ele. Segundo Luciana Caetano, autora do livro O elo entre desigualdade regional e desigualdade social, (Edufal/Fundação Perseu Abramo, 2019), uma das mais marcantes características do Estado nacional é alcançar o crescimento econômico e competitividade no mercado internacional, mesmo que para isso sejam ignorados seus meios e efeitos colaterais que, no contexto atual, podem ser absolutamente desastrosos.
As defesas constantes do presidente em prol do funcionamento da economia e a subvalorização da saúde da população – caminhos que sequer são aprovados por economistas – constroem definitivamente, tijolo por tijolo, extensos e sólidos muros de descaso e ignorância que adicionam obstáculos aos verdadeiros profissionais que estão na linha de frente para conter a proliferação do vírus. No fim, o antídoto contra o coronavírus e Jair Bolsonaro é o mesmo: a informação.
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Wanderson José Francisco Gomes é mestre em sociologia pela UFAL. Autor do livro Letícia, publicado pela Editora Multifoco do Rio de Janeiro.