Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

#nadaseracomoantes – MídiaDC (depois do corona)

(Foto: Freepik)

É desesperador! Folhear jornal atrás de jornal, em papel ou na internet, e ler um assunto só. Rádio, WhatsApp, Facebook, Instagram – a coisa não muda. Semana obrigatória de quarentena, rodar o mundo de notícias para chegar ao mesmo lugar. #virus.

Mas na internet é pior. As saídas, os caminhos alternativos sugerem carpe diem, brinque com seu pet, muito vibrador e pouco amor (sexo na quarentena), venha para a indústria pornô em crescimento, acredite que o feminicídio aumentou na pandemia, converse com as plantas, vida a dois é um desafio do confinamento, 1,7 bilhão de pessoas em casa, quantos #desquitespóscorona porque o impossível aconteceu, marido e mulher juntos 24 horas e o mundo parou. Ainda pior que o pior são os conselhos: não desanime. Janelaço.

Justiça manda parar a carreata #obrasilnaopodeparar. Paulo Guedes se mantém isolado e os jornais estampam o rosto de Mandetta, que começou rindo ao ser indicado ministro mas acaba março de cenho franzido na sinuca de bico em que o deixou o discurso de Bolsonaro incitando pessoas a sair às ruas. #cuidadocomamidia.

“Infelizmente, alguns vão morrer. Paciência”, manchete de Bolsonaro. “Impeachment? É pouco”, panelaço. Dinamarca fica em casa mas a Suécia mantém escolas, bares e restaurantes abertos. Epa, não somos a Suécia, #aquifaltamhospitais. Aqui faltam domésticas, aprenda a misturar uma lata de sardinha e ovo no arroz velho. #aquifaltatudo, faça seu próprio álcool gel e máscaras em casa. Lições de tudo. Nunca tantos profetas rindo com receitas para aliviar a crise devastadora, #sejaamelhorversãodevocêmesmo.

O elo perdido entre o coronavírus e o ser humano pode ser o pangolim, mamífero selvagem que carrega no organismo vírus similares ao Sars-CoV-2. Ou será o morcego? Uma sopa de morcego com pangolim na China? Ou uma chinesa que aparece no vídeo espirrando e infectando elevadores para infectar o mundo. #cuidadocomfakenews.

Em poucas horas nas redes, Paul McCartney canta Let it be, Michael Jackson ressuscita Faça do mundo um lugar melhor, repentistas proliferam, Drauzio Varella recomenda num vídeo que as pessoas saiam à rua e noutro pede o contrário. Músicos se reinventam com paródias de Bella ciao e Apesar de você para Bolsonaro. Carmen Miranda canta E o mundo não acabou. Muitos corações virtuais. Pensadores filosofam por Jean-Jacques Rousseau, “o homem é bom mas o vírus o corrompe”, ou Hannah Arendt, “matar é uma tarefa banal e cotidiana”. Salários cortados, pastores evangélicos cobram o dízimo para garantir vida eterna já que essa está ferrada mesmo, o governador carioca Witzel adverte “se você sair, nós vamos te matar”. Toneladas de notícias falam de velhice. Você é velho, acostume-se.

Plim, outro vídeo, um cérebro rola pelo chão, “toma, você deixou cair”. Bolsonaro manda todo mundo sair, o comandante do Exército recomenda prevenção, o economista português Boaventura Souza Santos alerta sobre a falência dos governos de direita e sua lógica neoliberal, a escritora Conceição Evaristo avisa ”eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Uma distração e entra um meme, “continuo concordando com Messias e me recuso a aceitar um leito em hospital, deixo todos para os esquerdistas, comunistas que não acreditaram que a terra é plana”. Esotéricos agradecem, “obrigada, vírus, por nos mostrar como estávamos perdidos!” Metáforas gráficas de pinguins contra tubarões, a dicotomia saúde versus economia. Chamamentos, “venham para o culto, irmãos, vai ser contagiante”, Jesus canta “you just call out my name…”, Bolsonaro livra Igrejas de quarentena. “Nostradamus previu o vírus em 1555”, #fatooufake. “Epidemia de corona foi jogada da China para obter ganhos políticos”, #fatooufake.

Para conter o vírus, “máscara na boca do Trump”. O corona aparece em pessoa e convida “vem pra rua, vem!” Números assustadores de mortes, “o Brasil inteiro enfrenta um inimigo mortal, o Brasil enfrenta dois”. Bolsonaro nas redes. O papel higiênico se personifica e se garante, “don’t panic”. A China na berlinda, “se esse é o vírus chinês, imaginem o original”. Internet, para rir ou chorar? Freud recomenda, fiquem em casa até que entendam Lacan, Mauricio de Souza faz Cascão lavar as mãos.

Se está difícil aturar os #diariosdeconfinamento com gente babando bobagem em cima da página em branco, como será a enxurrada de livros produzida neste período em que todo mundo quer ser Shakespeare, pois o bardo produziu Rei Lear numa quarentena? Mas algo me diz que a qualidade será pior. É prudente seguir o aviso do Magazine Littéraire deste mês, “se você quer ser jornalista, comece por ler Roland Barthes, Albert Camus, Alexandre Dumas e, principalmente, William Shakespeare!” Lembrete, não se recomenda A peste porque deprime e atrai doença. Muito menos o recém-lançado Coronavírus e a luta de classes. Nem pensar em filmes de fim de mundo, como Mortos que matam (1964), O dia em que a Terra parou (1951).

Como a gripe espanhola, essa “gripezinha” é microbiana, endêmica e mundial. Estimular a mente em tempo sombrio lendo livros de mil páginas – Guerra e Paz, de Liev Tolstói (mais de 1500), Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (2472 páginas).

Ler, sim, mas as livrarias estão vazias, pior crise da história segundo a Câmara Brasileira do Livro, todo mundo correndo para ver museus virtuais, Inhotim de longe, ou frequentando festas e brindando à distância no app Houseparty, caminhando nas ruas de qualquer cidade do globo em Google Street View e indo bem longe com Google Earth VR.

Rock in Rio marcado para junho deve ser adiado em Lisboa e Supla se oferece para ajudar médicos e enfermeiros. O autor de I love rock n’roll, Alan Merrill, morre vítima da covid-19. Chocolate de Páscoa encalha, mas estar confinado em casa é um incentivo, dizem, logo você estará viajando de novo, vídeo: ouça este texto gravado por um espírito da luz, você vive “um momento extraordinário neste planeta ajoelhado diante do invisível, a Cidade-Luz mergulhada nas trevas… enquanto isso, o planeta Terra se cura”.

Escapar, leitores e ouvintes avisam que estão saturados de redes sociais, trazem ansiedade, só Tatá Werneck teve 139 milhões de visualizações nos 48 vídeos que compartilhou. Basta! É preciso estar preparado para quando as celas se abrirem, nem pode viralizar o #basta porque sim, estamos encarcerados, o vírus nos pegou, pela internet, e quem ganhou força na pandemia foi o jornalismo profissional. Não somos uma raça em extinção, como previu o Mito. O papel da imprensa é poroso e não traz risco de contaminação, avisa O Globo, e os jornalistas profissionais, quando atacados, reagem como Juca Kfouri na Folha de S.Paulo, cada um “segue vigilante, crítico, doa a quem doer… bajular não é vocação da imprensa”.

PS. Daniel Azulay, o primeiro amigo de muita gente morto pelo coronavírus – e de Joaquim Ferreira dos Santos, na coluna d’O Globo no sábado (29). Por falta de espaço no cemitério do Caju, foi enterrado no mesmo túmulo do irmão Rubem. O cineasta Jom Tob Azulay, o terceiro irmão, conta que Bimbico morreu aos 20 anos mergulhando no domingo de Páscoa nas ilhas Tijucas da Barra, em 1963. O desenhista e artista plástico Daniel, de 72 anos, mantinha um tesouro em papel, desenhos originais de Nássara, Millôr, Jaguar, gibis, estampas Eucalol, e costumava se despedir, na Turma do Lambe-Lambe da TVE e Bandeirantes, nos anos 1970 e 1980, desejando “um algodão doce para você”. Por causa do vírus, morreu sem velório ou despedidas, com caixão lacrado.

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Norma Couri é jornalista.