Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O primo do porteiro e a desestabilização do debate público

(Foto: Freepik)

Era uma vez um presidente. Ou melhor, era uma vez um ex-militar com histórico de atleta que brincava no poder. Na época desse ex-militar, houve uma gripezinha que atingiu todo o mundo, matando milhares de pessoas e preocupando as mais altas esferas de poder mundial. Na ameaça iminente dessa doença, as Olimpíadas foram postergadas, o Papa rezou sozinho na Praça de São Pedro e mais de um bilhão de pessoas ficaram confinadas em suas casas. Nessa mesma época, aconteceu um fenômeno bem peculiar: centenas de primos de porteiros foram trocar pneus de caminhões e, por fatalidade do destino, as peças estouraram, levando a óbito os acidentados. Mas o presidente que brincava não se importou com isso, pois a morte chegará para todos e nós temos que aprender a lidar com ela.

O nome desse fenômeno peculiar se chama fraude. O presidente que brinca no poder, Jair Bolsonaro. A gripezinha que leva a óbito, covid-19. E, a partir dessa breve ficção, queremos falar da desestabilização do debate público através do discurso oficial, que legitima as notícias fraudulentas e, por mais inimaginável que pareça, mata.

O discurso oficial mata na mesma medida que mente. Dizer que o presidente e seus filhos divulgam mentiras é, na maior parte das vezes, equivocado. Isso porque há muitas afirmações vagas, ataques direcionados e frases com espaços para insinuações. Insinuações, essas, que costumamos chamar de fake news ou, como defendemos, notícias fraudulentas. Ou seja, quando dizemos que ele mata, não estamos usando a literalidade da frase, mas dizendo que esse discurso pode levar ao caos social, à aceitação de um posicionamento radical e nocivo, e esse, sim, leva a um fim pré-determinado simbolicamente.

O presidente e seus filhos não mentem nem muito nem pouco, fazem isso na medida certa para desestabilizar o debate público e ameaçar vida de milhões de brasileiros, além de fazer com que a mentira escolhida tenha mais força do que a verdade. Na morte dos primos dos porteiros, acontecimento tão real quanto o Plano Cohen em 1937, vemos de forma clara como isso acontece.

Em entrevista à TV Bandeirantes, no dia 27 de março, Jair Bolsonaro questionou os dados sobre as vítimas da covid-19 no Brasil – especificamente, no estado de São Paulo. Chegou até mesmo a afirmar que os números estavam sendo utilizados para fins políticos. No dia seguinte, a tragédia aconteceu: os pneus estouraram. Estouraram no momento perfeito, diga-se de passagem.

Nem muito tempo depois da entrevista – afinal, para uma notícia fraudulenta funcionar, ela precisa ser repetida inúmeras vezes e antes de qualquer possibilidade de questionamento – e nem muito próximo da declaração – tempo suficiente para amplificar o alcance da mensagem e de preparar o debate público. Uma estratégia calculada, mas que, diferentemente do que aconteceu com as fake news contra as universidades públicas, foi amplamente questionada por ser uma história mais ficcional do que as reservas de nióbio que tornariam o Brasil uma nação de primeiro mundo.

Embora essa história de pneu matando com a causa de morte atribuída à covid-19 possa parecer absurda, ela motivou mais questionamentos sobre os dados divulgados sobre as vítimas e quais medidas deveriam ser adotadas para conter o vírus. A história, em si, serviu para mostrar como funciona a máquina da desinformação na política do Brasil. As insinuações que ela gerou alimentaram o imaginário de que algo estava errado e de que nada garantia a realidade dos números. A história não foi para dispersar o debate público, mas para reuni-lo sob o signo da dúvida.

E, para alimentar ainda mais essa questão, no dia 30 de março o governo centralizou as informações na Secom. Ou seja, até quem acreditava no Ministério da Saúde passou a questionar, agora, os dados oficiais divulgados. A realidade da covid-19 no Brasil passou a ser construída na dúvida – se há crise ou se não há crise, pandemia ou não, tornou-se uma questão de em quem você duvida, e não mais em quem você acredita.

A fraude na opinião pública foi, novamente, implantada por meio de uma ficção construída de forma magistral. A história é um absurdo, mas cumpriu o papel para qual foi designada: desestabilizar toda crença fundamentada em dados e abrir brechas para as fake news.
Notícias, essas, que matam, pois levam a crer que a pandemia não existe, que jovens não morrem por covid-19, que é mais perigosa uma crise econômica do que uma doença que ataca a respiração, que a cura já existe e que remédios milagrosos são capazes de barrar o inimigo invisível.

Por isso dizemos que Bolsonaro e seus filhos mentem pouco, eles fazem algo bem mais grave. Legitimam as fraudes, que desestabilizam o debate público, abrem brechas para novas informações tendenciosamente construídas e, enfim, matam. Enquanto o primo do porteiro morre por pneus que estouram na ficção, a democracia no país morre sem, sequer, nos darmos conta disso.

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Wellington Felipe Hack é bacharel em Jornalismo e acadêmico de Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (RS).