1. Uma cidade feliz
“É uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade.” Essas são palavras do médico Bernard Rieux, personagem principal do romance A peste, publicado em 1947 pelo filósofo Albert Camus. A história narra a chegada e os efeitos de uma peste na cidade de Oran, na Argélia, em algum ano da década de 1940, mostrando as tensões de uma vida ameaçada pela invisibilidade violenta da epidemia, que começa dizimando os ratos e rapidamente passa a matar pessoas.
O franco-argelino Camus, Prêmio Nobel de Literatura de 1957, aborda as diversas reações humanas frente à ameaça na cidade isolada em quarentena, entre elas o medo desesperador que cega a muitos, o egoísmo mais mesquinho e a irracionalidade que brota em cenários de tanta incerteza e ameaça. Por outro lado, há também a heroica solidariedade sem recompensas (nesse mundo ou em qualquer outro) e o constante reconhecimento de que é possível fazer algo, principalmente para aqueles que tem menos meios para sobreviver.
Oran é uma cidade feliz, que em algum momento tem a lembrança da morte no centro da vida banal. É nesse contexto que Rieux defende a honestidade extrema para avaliar as circunstâncias, sem falsas esperanças que possam servir para aplacar nossas fragilidades. Nesse cotidiano de sofrimento extremo e medo contagiante, Rieux sabe dos limites da própria ação para aplacar as dores e feridas, sem expectativas maiores: “Não sei o que me espera, nem o que virá depois de tudo isto. No momento, há doentes, e é preciso curá-los. Em seguida, eles refletirão e eu também. Mas o mais urgente é curá-los. Eu os defendo como posso, é tudo.”
Esse posicionamento parece ser distante e frio, mas o médico reconhece uma única e paradoxal esperança: nós mesmos, com nossas fragilidades e limites. Teremos que encarar a peste todos os dias se aproximando cada vez mais; isso pode trazer algum desespero, mas teremos que lidar com o problema e suas consequências, se possível com solidariedade e humanidade. “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala.”
Os elementos envolvidos nessa interpretação possível da epidemia também podem ser compreendidas em outra perspectiva. Camus foi membro da Resistência Francesa durante a ocupação nazista na França, entre os anos de 1940 e 1944, e a história narrada em A peste serve como paralelo dessa situação. O totalitarismo e a desumanização envolvidos no procedimento de conquista e ocupação se assemelham à peste que toma conta de Oran. Algo que assusta e domina chega aos poucos e faz com que o pior das pessoas apareça. Mas sempre é possível resistir, mesmo quando a ameaça é gigantesca e o combate pareça inútil.
Existem conexões entre a peste literal e a peste metafórica, que envolvem os modos pelos quais a incerteza, o pânico e o medo podem nos tornar piores e nos fazer agir de maneiras estranhas a nós mesmos. Ou a aceitar (e até apoiar) absurdos e violências em nome de alguma estabilidade ou segurança: “Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos”.
2. Fantasmas do resguardo
Quando vivenciamos tempos de pandemia, compartilhamos os assombros daqueles que vivem na cidade de Oran. O desespero que sentimos frente à contaminação, as limitações que não havíamos planejado e a sensação de descontrole sobre a própria existência nos deixam “pouco à vontade na vida”. Além desse medo do “ameaçador agora”, a falta de segurança e expectativas em relação ao futuro também assustam. Aqui, o impacto sobre nossos planos e esperanças também nos deixam deslocados, contribuindo para a sensação de desconforto geral, que pode estimular o desespero e a reatividade.
Nesse sentido, de maneira geral, o reconhecimento de nossa fragilidade na incerteza em relação ao que virá são os traços distintivos da vida durante a pandemia, com seus distanciamentos, quarentenas e isolamentos. “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”
Nunca tivemos tantas possibilidades de informação e comunicação disponíveis em momentos de crise e tensão, e ter tantos dados e números sem dúvida ajuda nas nossas tentativas de restabelecer o controle sobre a caótica situação. Saber o que acontece, as possibilidades envolvidas, os modos pelos quais podemos lidar com o risco e com a doença é fundamental e é importante nos mantermos atentos às orientações e divulgações. No entanto, esse avanço em relação a outros tempos e ameaças também produz efeitos colaterais.
Junto à pandemia, vivenciamos tempos de “infodemia”, uma superabundância de informações, algumas precisas, outras não, que estimulam cada vez mais nossos sentimentos e emoções mais profundos. Em busca de segurança e estabilidade, procuramos a cada momento mais informações, mais certezas, mais possibilidades de organizar o caótico cenário, seja através das redes sociais, seja através de meios de comunicação. E isso pode nos deixar mais excitados e ansiosos.
Acompanhando os boletins, com o número de casos suspeitos, de mortos e de curados, criamos mais tensões e expectativas. Notícias falsas e a desinformação podem contaminar o ecossistema informativo. Dados e informações questionáveis podem ser utilizados com o objetivo de estimular reações ou angariar apoio para algum tipo de posicionamento. Dessa forma, reações violentas e egoístas podem ser estimuladas, como o avanço sobre as redes de distribuição de alimentos e recursos, com chances de que tudo entre em colapso.
Em contextos de estresse e incerteza, uma tendência é tomarmos decisões ruins devido à dificuldade de avaliar todas as opções disponíveis, tornando-nos mais impulsivos e menos reflexivos. “Esse cheiro de morte, que entorpecia todos aqueles a quem não matava.” Isso também impacta nossas preocupações morais, que ficam bem mais restritas aos círculos que ocupamos. No entanto, reflexões e ações solidárias também podem surgir, com o compartilhamento de ações e grupos de apoio mútuo durante a situação extrema, que acabam por influenciar e impactar outras pessoas. É mais raro, mas não é impossível.
Precisamos lidar com esses paradoxais efeitos da busca por segurança e controle, incluindo um cuidado maior com nossas reações e preocupações. É difícil prever como podemos reagir, mas o fundamental aqui parece ser seguir o conselho de Rieux: ser honesto e cuidadoso, conscientes de que o desespero pode trazer à tona o pior de nós mesmos. E viver um dia depois do outro, controlando aquilo que é possível controlar, conscientes dos limites da nossa própria condição e tentando contribuir de algum modo para diminuir o sofrimento daqueles que são mais frágeis.
3. Renascimentos
“A história nunca se repete, mas os homens sim.” Essa hipótese breve, porém reflexiva, consta do livro Um espelho distante: Um terrível século XIV, da historiadora Barbara Tuchman, que aborda as imensas dificuldades que as pessoas desse tempo vivenciaram. Entre elas, estão uma grande epidemia de peste, que matou muitas pessoas na Europa a partir de 1348 e nos anos seguintes. A doença que assolou o período impactava diretamente a vida de todos, exibindo sofrimento e morte nas cidades.
As descrições do período envolvem a tensão epidêmica e o registro da praga. O pânico intenso da invisibilidade das epidemias, junto à falta de controle sobre a vida, são os traços comuns daquilo que Tuchman se diz repetir ao longo da história. Os contextos mudam, as virologias são outras, mas os humanos somos os mesmos: frágeis, inseguros, reativos e em busca de alguma esperança.
Sobre esperanças, nesse momento é interessante pensarmos nas mudanças que ocorreram naquela sociedade após a grande quantidade de dor e sofrimento associadas à peste. Um traço comum das reconstruções históricas do período envolve o reconhecimento de que algo mudou, mesmo em meio a todo o medo e à ameaça. Numa sociedade sem grandes disponibilidades tecnológicas de interação e diálogo, nem sofisticações médicas que temos disponíveis hoje, uma dia a peste foi embora. Mas tudo seria diferente para aquelas sociedades. O historiador francês Georges Duby tentou sintetizar essas alterações em A Idade Média na França (987-1460):
“Em 1348, a peste negra invadiu a França e, dali para a frente, nada mais seria como antes. Uma terrível mortalidade atingiu o reino. A escassez de mão-de-obra desorganizou as relações sociais e de trabalho. Os trabalhadores que restaram aumentaram suas exigências. Um rogo foi dirigido a Deus, e também aos homens incumbidos de preservar Sua ordem na Terra. Mas foi preciso entender que nem a Igreja nem o rei podiam fazer coisa alguma. Não era isso uma prova de que nada valiam? De que o pecado dos governantes recaía sobre a população? Quando o historiador começa a encontrar tantas maldições contra os príncipes, novas formas de devoção e tantos feiticeiros sendo perseguidos, é porque de repente começou a se estender o império da dúvida e do desvio.”
Dúvidas e questionamentos foram motivados pelas situações que aquelas pessoas vivenciaram. Na incerteza, novas possibilidades afloraram, inclusive relevantes dúvidas acerca das seguranças e autoridades nas quais se confiavam até então. Consequentemente, outras reflexões se desenvolveram, principalmente em relação à organização sociopolítica possível. Mesmo com o impacto das reações humanas motivadas pelo medo e pela incerteza, novas possibilidades surgiram a partir da caótica peste e de suas ameaças. A estrutura do modo de vida foi repensada e os costumes e conjuntos de crenças foram impactados.
É difícil mensurar o impacto dessas revisões (se é que realmente houve algum) para o florescimento do Renascimento da Europa nos tempos posteriores, com a revalorização das ciências, das artes e do humanismo. No entanto, essa ligação entre os pontos nos faz pensar no quanto as tensões que vivenciamos numa epidemia podem vir a estimular revisões e considerações de cenários em relação ao modo como vivemos e suas estruturas.
Um dia a peste vai passar e a epidemia vai embora. Quando isso ocorrer, lembraremos do que fizemos e de como reagimos. A melhor expectativa que podemos ter, aqui, é que ela não estimule nossas reações mais violentas nem nos entregue ao terror, o que empalidece nossa razão e nos torna piores. Um risco de fundo é que a peste (nesse caso, a metafórica) possa se instalar e esconder fundo dentro de nós mesmos, sem que nós tenhamos consciência disso:
“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
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REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. A peste. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2017.
DUBY, Georges. A Idade Média na França (987-1460): de Hugo Capeto a Joana D’arc. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
SAPOLSKY, Robert. “Our brains on coronavírus” In: CNN News. 13 de março de 2020.
TAYLOR, Steven. The Psychology of Pandemics: Preparing for the Next Global Outbreak of Infectious Disease. Cambridge Scholars Publishing, 2019.
TUCHMAN, Barbara. Um espelho distante: Um terrível século XIV. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
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José Costa Júnior é professor de Filosofia e Sociologia (IFMG Campus Avançado Ponte Nova).