Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Para a grande mídia, os profissionais da saúde são heróis, pero no mucho

(Foto: Fotos Públicas)

A grande mídia tem se referido aos profissionais de saúde como heróis. Embora sedutor, tal discurso é paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que “reconhece” a importância desses trabalhadores, sobretudo num momento de crise na saúde como a que estamos vivendo, tenta estabelecer um sentido segundo o qual essas pessoas poderiam/deveriam trabalhar exclusivamente por amor. O discurso é semelhante ao que se vê em relação aos profissionais da educação, especialmente os professores.

Não há dúvida de que existe um aspecto ético-moral bastante acentuado no trabalho destes profissionais, que se dedicam a salvar vidas. Nesse sentido, é impossível imaginar que alguém que trabalhe com esse tipo de exigência possa fazê-lo exclusivamente em função de um salário no final do mês. Mas, do mesmo modo, é impossível ignorar que um profissional da saúde (assim como os da educação) possa se empenhar em suas atividades laborais sem que seu esforço seja reconhecido financeiramente de forma adequada.

O “discurso do herói”, mais do que paradoxal, é contraditório. Isso porque é essa mesma grande mídia que tenta a todo momento desqualificar o trabalho desses profissionais quando diz que “é preciso enxugar a máquina pública”, demitindo seus servidores. Se o serviço público não é o único setor de trabalho em que estes profissionais estão ocupados, certamente é onde são mais exigidos, sobretudo em virtude das altas demandas e da precariedade que enfrentam.

Recentemente, o jornal O Globo publicou um editorial em que elege os servidores públicos, aí incluídos os da saúde, como os grandes vilões da crise. Dizia o referido editorial: “Se as finanças públicas estão dissolvendo, porque a recessão seca os canais que abastecem o Tesouro de impostos, e é preciso dinheiro público para salvar vidas em hospitais, postos de saúde e garantir alguma renda a dezenas de milhões de pessoas que vivem na informalidade […], os servidores precisam dar sua contribuição”.

Esse discurso foi chancelado por diversos analistas que passaram a ocupar as bancadas dos telenoticiários e as páginas dos jornais. Obviamente que esses “especialistas” foram deliberadamente escolhidos para reforçar tal ponto de vista, conforme ocorre com o “debate” de uma série de pautas que, de interesse geral, acabam ficando restritas a pequenos círculos de discussão. O exemplo mais recente foi o da reforma da Previdência, em que a unilateralidade do debate ficou patente.

Como se vê, a partir do discurso paradoxal e contraditório da grande mídia, os profissionais da saúde são, de longe, os mais exigidos neste contexto da pandemia do novo coronavírus. Muitos desses profissionais, mal pagos e pouco reconhecidos, têm padecido pela violência da doença, ao mesmo tempo em que enfrentam pressões gritantes para se manter na ativa, num momento em que muitos deles têm se afastado dos seus postos abatidos pela moléstia que tentam combater.

O momento pelo qual passamos seria mais do que oportuno (sem querer ser ingênuo, obviamente) para a grande mídia evidenciar as dificuldades diárias desses trabalhadores, muitos dos quais enfrentam longas jornadas por remunerações que nem de longe refletem sua importância. Embora se deva reconhecer que existe uma elite no serviço público, com altos salários que extrapolam em muito o teto constitucional, a maioria desses trabalhadores ganha salários equivalentes aos da mesma categoria na iniciativa privada, com o agravante de trabalhar em situações muito mais precárias.

Não só o editorial d’O Globo, mas a mídia hegemônica em geral, “ignora” o fato de que os profissionais do serviço público (não só os da área da saúde) são, em geral, muito qualificados, pois do contrário não ocupariam os postos que ocupam, alcançados após vencerem concorrências desumanas. “Ignora”, também, que, embora esses servidores disponham do direito à estabilidade no emprego (que não é um privilégio, mas uma garantia ao cidadão), muitos não contam sequer com um plano de carreira.

A propósito do referido editorial d’O Globo, o que “seca os canais que abastecem o Tesouro de impostos” não é só a recessão, mas a opção que os sucessivos governos do Brasil têm feito pelos mais ricos em detrimento dos mais pobres. Como fica claro pela análise do orçamento executado nos últimos anos no país, a opção dos governos tem sido garantir o pagamento milionário da dívida, enquanto os outros serviços, como a saúde e a educação, ficam em segundo plano.

Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, só em 2019 o Brasil pagou mais de 1 trilhão de juros e amortização da dívida (R$ 2,8 bilhões por dia e 85 bilhões por mês), enquanto a saúde e a educação consumiram menos de 8% de todo o orçamento federal executado, o que comprova de forma cabal que não falta dinheiro, mas sim que existe uma opção deliberada para o grande capital. Opção esta que parece ser chancelada pela grande mídia, quando mira na covid-19, mas acerta os servidores públicos da saúde.

Em meio à discussão de como superar a crise, em nenhum momento se cogita a possibilidade, por exemplo, da taxação das grandes fortunas, o que poderia garantir a arrecadação de pelo menos R$ 80 bilhões caso os bilionários, que proporcionalmente pagam em impostos menos do que os pobres, tivessem 1% da sua fortuna taxada. Nenhum editorial, nenhuma reportagem, nenhuma análise aponta nesse sentido, obviamente porque não existe interesse nesse debate.

Então não é por acaso que a instância jornalística qualifica os profissionais da saúde como heróis no contexto da pandemia. Com esse discurso, tenta fazer crer que esses trabalhadores estariam dispostos a morrer pela causa, mesmo que isso significasse seu padecimento. Embora muitos estejam dispostos a fazer sacrifícios (como se tem visto em vários cantos do país), isso não significa, nem de longe, que esses trabalhadores devam abrir mão dos seus direitos. Aliás, se existe um momento para que os direitos dessas pessoas sejam reconhecidos, é este que estamos vivendo.

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Francisco de Paula Araújo é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Advogado, bibliotecário e editor.