Reservados os deslumbramentos tecnológicos, a inteligência artificial (IA) tem tido um papel de significância na medicina e na saúde, e isso tem ganhado destaque na ampla mídia quando as primeiras iniciativas de apoio utilizando essa tecnologia começaram a aparecer na luta contra a pandemia. Entretanto, existe um longo caminho para que esta seja reconhecida como recurso do cenário médico. E, nesse sentido, a primeira coisa que achamos relevante considerar é que a IA não se trata de uma solução, mas sim uma ferramenta da solução em saúde.
Este breve artigo compreende que o conceito de inteligência artificial abriga machine learning, que, por sua vez, tem como capacidade mais específica a deep learning. Nesse contexto, suas ferramentas se destacam em meio aos processos de transformação digital. O professor Tomaso Poggio, do MIT, disse que estamos viabilizando este momento da IA porque já vivemos seu “boom” na década de 1960 e isso corroborou para os três fatores que permitem, hoje, a transformação digital: volume gigante de dados disponíveis, algoritmos com abordagens mais maduras e supercomputadores. A quebra de paradigma da IA está no fato de que passou a aprender com base em exemplos e feedbacks, e não mais pela explícita necessidade de programação, conforme abordado por Erik Brynjolfsson e Andrew Mcafee no livro The Second Machine Age.
Estamos frente a um movimento impulsionado por uma série de avanços tecnológicos que culminam em um momento oportuno. Qual a melhor fase para inovar que não aquela em que convergem as crises? A capacidade de inovação é o motor condutor para superar a crise durante e pós coronavírus (Sars-Cov-2), ou covid-19. A seguir, apresentamos algumas das tecnologias de IA com a intenção de entendermos cada uma delas no combate ao coronavírus.
Dados tabulares por IA
A inteligência artificial nos campos da saúde pode trabalhar associada à tabulação de dados em mineração (data mining), ou mineração de textos (text mining). O uso de data mining, combinado com algoritmos de machine learning, “pode auxiliar o especialista da saúde em momentos críticos que demandem decisões rápidas quando há uma deficiência dos recursos apresentados, por exemplo, imagens de baixa resolução”. (FERNANDES; CHIAVEGATTO FILHO, 2018, p.18.)
A partir do momento que a pandemia do coronavírus começou a se espalhar pelo globo, algumas iniciativas ganharam notoriedade, apresentando dados que pudessem ser utilizados por algoritmos de IA. Os algoritmos são pensados visando a maximização de uma solução, por serem criados com objetivos claros. Um exemplo é o projeto do hospital Johns Hopkins, que desenvolveu um Centro de Recursos do Coronavírus para coletar e apresentar dados atualizados da pandemia pelo mundo para que possam ser processados por outras soluções com o uso de inteligência artificial.
De acordo com informações disponíveis pelos organizadores do Mapa de Tendências do Coronavírus do Hospital Johns Hopkins, esse recurso foi elaborado por especialistas em saúde pública para ajudar a melhorar o entendimento do vírus, informar o público e breves formuladores de políticas a fim de orientar uma resposta, melhorar o atendimento e salvar vidas. A ferramenta serve de apoio à decisão para mitigar pandemias.
Há um grande corpo de pesquisa e dados em torno da covid-19. Com isso, o Kaglle apresenta várias iniciativas interessantes onde as pessoas podem compor conjuntos de dados para que sejam utilizados em aprendizado de máquina. No contexto da pandemia global da covid-19, o Kaggle lançou vários desafios para fornecer informações úteis que podem responder a algumas das questões científicas abertas sobre o vírus. É o caso da Previsão Global COVID-19, na qual os participantes são incentivados a ajustar dados mundiais para prever a evolução da pandemia, ajudando a determinar quais fatores afetam o comportamento de transmissão da covid-19.
Processamento de linguagem natural
As técnicas de processamento de linguagem natural (PLN) conferiram à inteligência artificial a oportunidade de utilizar essas ferramentas para extrair informações que estão inseridas em artigos científicos que tratam sobre a covid-19 e outras pandemias. Uma dessas iniciativas é a CiteNET. Nela, é possível pesquisar com base em PLN algum texto ou outros documentos relacionados ao coronavírus. Trata-se de uma base de dados que está em fase experimental, mas foi disponibilizada em março deste ano com o intuito de ajudar médicos e pesquisadores a encontrar produção científica ligada a pandemias.
Visão computacional
A visão computacional no combate à covid-19 possui ações centradas em análises de exames e diagnósticos processados por imagem. Como exemplo, alguns bancos de dados de imagens. O GitHub disponibiliza um banco de imagens para treinamentos, envolvendo técnicas de processamento de imagem, visão computacional e aprendizado de máquina. Disponibiliza também um repositório de dados sobre o coronavírus com informações visuais, alimentado pelos laboratórios do Hospital Johns Hopkins.
O Data Life é uma iniciativa brasileira, uma das divisões da Data H. Trabalha em parceria com algumas entidades da área médica a partir do uso de um algoritmo de detecção de pneumonia em imagens de pulmões. O objetivo é a criação de um dataset que permita realizar a identificação de enfermidades em tomografias de pulmão.
Computação de alta performance
Recentemente, foi noticiado em meios de comunicação que algumas empresas, a exemplo da IBM, em conjunto com o Escritório de Política Científica e Tecnologia da Casa Branca e com o Departamento de Energia dos EUA, realizaram testes com computadores mega potentes para tentar decifrar possibilidades de cura da covid-19. Uma das ideias principais é responder se, com base na comparação de variações do mapa genético de outros vírus da família Sars, trata-se de uma mutação espontânea ou gerada em laboratório. Esse projeto leva o nome de Consórcio de Computação de Alto Desempenho COVID-19 e tem como aliado, também, outro supercomputador chamado Summit no combate ao vírus.
Curadoria digital e o controle de riscos na inovação
Diferente da mágica deslumbrante do cinema, aos poucos a sociedade vai percebendo que a inteligência artificial é muito mais um apoio à solução e precisa ser constantemente treinada para desempenhar o seu melhor. Esse processo é chamado de curadoria e, principalmente para aquelas aplicações que pretendem apresentar mais que perguntas e respostas, precisa se preocupar com a curadoria digital. O curador é quem treina a aplicação de IA. No Brasil, encontramos uma iniciativa de curadoria digital da ACIB, que está desenvolvendo seleção de conteúdo específico sobre o coronavírus a partir de notícias, informações, orientações e serviços divulgados com intuito de superar a crise.
Se devidamente controlado, sabemos que, onde há risco, pode haver oportunidade. Riscos como éticos, de cibersegurança, de automação excessiva e privacidade se inter-relacionam e flutuam nas ações que envolvem inovação tecnológica. Desde que esses riscos possam ser encarados como desafios, as ferramentas de inteligência artificial podem contribuir neste momento da pandemia e apontar novos caminhos para o pós crise da covid-19. Não como uma deusa, mas sim como recurso devidamente explorado tanto na medicina e na saúde quanto nos outros campos que, neste momento, também sofrem influências, a exemplo da economia e do trabalho. Assim, a curadoria, neste contexto, pode mitigar riscos e apoiar-se no conhecimento da IA pelos seus usuários.
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Barbara Coelho é professora do ICI-UFBA, doutora em Educação, pós-doutora em Ciência da Informação e pesquisadora líder do Laboratório de Tecnologias Informacionais e Inclusão sociodigital (LTI Digital).