A imprensa tem memória curta. Faz parte da história das redações de jornais esquecer os personagens que se envolvem em episódios polêmicos logo que eles se afastam e ficam fora dos holofotes. Vez ou outra, os repórteres lembram dos assuntos nas conversas nas mesas dos botecos. Trabalhei em redação de 1979 a 2014 e não fui exceção: também esqueci o nome de muita gente. Inclusive de pessoas que denunciei no jornal. Mas os tempos mudaram. E as novas tecnologias colocaram a história na nossa mão simplesmente apertando uma tecla do celular. E as redes sociais estão aí ativas para não deixar que nós jornalistas esqueçamos dos personagens que já foram o centro de grandes rolos. Fiz esse nariz de cera para puxar o assunto sobre o qual vamos conversar: a história do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, o “homem da boiada”.
A história de Salles precisa ser reescrita. Ele assumiu o Ministério do Meio Ambiente em 2019, no início do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). E pediu demissão em junho de 2021, após sangrar no cargo por vários meses. A situação de Salles ficou insustentável depois que o delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente da Polícia Federal (PF) do Amazonas, apresentou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma notícia-crime contra o então ministro, acusado-o de estar envolvido com o contrabando de madeira, entre outras irregularidades — há matéria na internet. Posteriormente, dois inquéritos foram abertos pela PF envolvendo Salles. Depois que deixou o ministério, ele perdeu o foro privilegiado e o seu caso foi para a Justiça Federal de primeira instância. No início de agosto, deu uma entrevista à Rede TV dizendo que era inocente e que foi vítima do “aparelhamento da PF”. A história de Salles vai muito além do contrabando de madeiras raras para os Estados Unidos, entre outros crimes. Ela precisa ser reescrita para nunca ser esquecida. Já temos um exemplo da história de um personagem que foi ministro no atual governo que está sendo reescrita. Trata-se do ex-ministro da Saúde e general da ativa do Exército Eduardo Pazuello. Ele foi colocado no cargo por Bolsonaro para alinhar o Ministério da Saúde com o negacionismo do presidente em relação ao poder de contágio e letalidade da Covid. Pazuello transformou o negacionismo de Bolsonaro em política do governo. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do Senado, a CPI da Covid, esta fazendo as ligações da administração Pazuello com a morte de 570 mil brasileiros pelo vírus e outros absurdos que aconteceram durante a sua gestão, como a morte de pacientes nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará por falta de oxigênio hospitalar. O relatório da CPI vai contar a história do que aconteceu entre as quatro paredes do governo federal durante a pandemia. E será para nós jornalistas uma fonte de informações preciosas.
Por tudo que a CPI já apurou, Pazuello foi para Bolsonaro a pessoa que implantou na Saúde o negacionismo do presidente como política de governo. E o que nós jornalistas sabemos sobre os acontecimentos entre as quatro paredes da administração de Salles no Meio Ambiente? Sabemos que, a exemplo de Pazuello, Salles implantou como política de governo a destruição dos órgãos de fiscalização do ministério, facilitou a vida dos madeireiros ilegais e permitiu a entrada de garimpeiros nas reservas indígenas. A maior vítima foi a Floresta Amazônica e os seus povos indígenas. A imprensa estrangeira tem cobrado dos jornalistas brasileiros trabalhos mais profundos sobre o que tem acontecido na floresta e com os povos que lá vivem. O que temos publicado são informações parciais. Dificilmente haverá uma CPI para esclarecer o assunto. Então, como vamos fazer? Apesar de toda a truculência de Salles, boa parte da rede de informações da região formada por ONGs, religiosos e organizações indígenas conseguiu sobreviver. Essa rede pode nos informar sobre o que aconteceu no atacado. O nosso maior problema é conseguir informações entre as quatro paredes do Ministério do Meio Ambiente. Conheço profundamente a organização dos madeireiros ilegais que operam na Amazônia e alguns grupos de garimpeiros. Eles não têm um comando central. São grupos que se organizam para uma ação específica — derrubar um mato ou garimpar uma jazida. Operam sob encomenda dos receptadores que os financiam. Lembro que eles operavam mesmo nos tempos que o governo federal os perseguia. Imagine o que fizeram com o governo os protegendo? Na semana passada (final de agosto de 2021) falei longamente com um amigo em Humaitá, pequena cidade no interior da Floresta Amazônica, às margens do rio Madeira e da rodovia Transamazônica. Ele me disse que a velocidade com que os madeireiros ilegais e os garimpeiros estão trabalhando na região lembra os anos 70, quando eles chegavam em grandes levas, atraídos pelas riquezas da região.
Um colega italiano, velho amigo dos tempos dos conflitos agrários no Sul do Brasil, me perguntou se Salles era malvisto porque não era ecologista. Respondi que não tinha nada a ver com isso. O ex-ministro cometeu crimes porque desrespeitou as leis brasileiras que protegem o meio ambiente. Lembrei-lhe que Salles ganhou notoriedade quando, durante uma reunião ministerial, no ano passado, recomendou que era hora do governo agir desregulamentando portarias e leis, aproveitando que a opinião pública e a imprensa estavam ocupadas com os problemas causados pela pandemia da Covid-19. Disse ele na ocasião: “Vamos aproveitar e passar a boiada”. Ninguém pode exigir do presidente Bolsonaro que coloque no Ministério do Meio Ambiente um ecologista. Ele tem o direito de escolher quem ele quiser. Só que aquele que assumir tem que respeitar a lei. Foi justamente isso que Salles não fez. Essa é a história que precisamos contar.
Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.