Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

As “emendas PIX” e a corrupção

A corrupção em níveis altíssimos é um dos maiores problemas do Brasil, embora não seja o mais importante. É um fenômeno complexo e multifacetado. Profundamente arraigada nas práticas políticas brasileiras (desde a chegada de Cabral), a corrupção se alimenta de um perverso sentimento de “levar vantagem” disseminado amplamente na sociedade brasileira.

Uma das características mais marcantes e tristes da corrupção brasileira se manifesta na criação de mecanismos institucionais, cuidadosamente inseridos na legislação, para viabilizar as práticas mais abjetas de malversação do patrimônio público.

Os procedimentos escusos mudam de forma ao longo do tempo, principalmente em decorrência de investigações parlamentares, administrativas, policiais e judiciais. Entretanto, a essência da rapinagem permanece praticamente intocada, independente da coloração político-ideológica do governo da vez. Tancredi, famoso personagem do romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, afirmou: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

As mutações nos procedimentos utilizados pelas engrenagens da corrupção não passaram despercebidas pela ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Rosa Weber, na condição de relatora da ADPF n. 854/DF. A ilustre magistrada afirmou em seu voto:

“Põe-se em questão a facilidade com que esquemas de corrupção de tamanha abrangência surgem, propagam-se e, mesmo após seu declínio, reestruturam-se; envolvem servidores e autoridades públicas de diversas unidades da Federação; e, ainda assim, conseguem subsistir mesmo diante da atuação fiscalizatória dos sistemas de controle e acompanhamento orçamentário. (…) Na era dos esquemas tipo PC Farias, falava-se em fantasmas, alusão à ocultação da presença por meio de empresas imateriais, identidades incorpóreas e operações espectrais. Na época da operação sanguessuga, evidenciava-se o caráter parasitário das condutas. Os envolvidos aderiam ao orçamento absorvendo recursos por meio de engenharia burocrática sem revelar a própria existência. Atualmente, a política patrimonialista, reinventando-se, instrumentaliza formas e fórmulas jurídico-contábeis para conferir ares de oficialidade a conteúdo inoficioso, aparência de institucionalidade ao que não encontra amparo na ordem constitucional. Como se sabe, a liturgia, por si só, não torna sacro o que é secular na essência”.

Observe-se que, mesmo depois da declaração de inconstitucionalidade do “orçamento secreto” do governo Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal, a distribuição de recursos públicos pelos parlamentares e a ausência de transparência permanecem no Governo Lula 3, consoante várias matérias veiculadas pela grande imprensa brasileira.

Nessa seara, merece atenção especial o que se convencionou chamar de “emendas pix”. Essa figura foi inserida no art. 166-A da Constituição por intermédio da Emenda n. 105, de 2019. Trata-se de uma modalidade de repasse de recursos públicos efetivada diretamente ao ente federado beneficiado (Estado, Distrito Federal ou Município). A operação independe de identificação da programação específica no orçamento federal. Também não é preciso celebrar convênio ou instrumento congênere.

A principal característica das “emendas pix” está na definição de que os recursos repassados pertencem ao ente federado quando da efetiva transferência financeira. O inciso II do parágrafo segundo do art. 166-A da Constituição foi redigido nesses exatos termos.

“A emenda Pix se tornou o recurso mais usado por parlamentares para mandar dinheiro federal a Estados e municípios. Neste ano, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva liberou R$ 25,6 bilhões para redutos eleitorais de congressistas. Do total, R$ 6,4 bilhões foram direcionados por meio da emenda Pix, valor maior do que o enviado para ações de saúde, educação e infraestrutura” (fonte: estadao.com.br).

Existem relações (espúrias) entre as “emendas pix” e a corrupção (ou malversação dos recursos públicos)? Considerando que a novidade foi engendrada por um parlamento majoritariamente fisiológico e clientelista, a suspeita de que não estamos diante de “boa coisa” é monumental.

Uma despretensiosa pesquisa no noticiário da grande imprensa indica que as suspeitas não são infundadas. Crescem continuamente os registros de diversos tipos de problemas envolvendo as “emendas pix”.

Como não há exigência de projetos prévios ou convênios para a liberação dos recursos públicos, o destino da imensa maioria das “emendas pix” só é identificado no momento do empenho da despesa. Assim, existe um sério comprometimento da racionalidade das ações, projetos e políticas públicas, assim como da publicidade ou transparência.

“Conforme o Estadão revelou, o dinheiro foi usado para bancar shows sertanejos em cidades sem infraestrutura durante a campanha eleitoral do ano passado. Além disso, R$ 287 milhões foram repassados sem bancar investimentos públicos, descumprindo a Constituição. Carapicuíba (SP), o município que mais recebeu, pagou mais caro por asfalto, praça e até carrossel de brinquedo, enquanto deixou escolas inacabadas e abandonadas” (fonte: estadao.com.br).

São crescentes as notícias de “dificuldades” com a transparência em relação às “emendas pix”. Vejamos dois exemplos:

a) “Cinquenta e sete municípios e o governo do Espírito Santo deixaram de explicar como gastaram mais de R$ 56 milhões em recursos recebidos pelas emendas Pix em 2021 e 2022. Nessa modalidade, o dinheiro público, enviado pelos parlamentares, cai direto na conta das prefeituras, sem a necessidade de passar pelos ministérios e sem que o município informe com o que pretende gastá-lo./Levantamento feito por A Gazeta mostra que dos R$ 63 milhões recebidos em 2021 e 2022 de transferências especiais, como são oficialmente chamadas as emendas Pix, apenas R$ 7,1 milhões — 11,3% do total — tiveram seu uso divulgado na plataforma TransfereGov, do governo federal. Esse site é destinado à informatização e à operacionalização das transferências de recursos do Orçamento federal” (fonte: agazeta.com.br);

b) “De acordo com Sidney Beraldo, [presidente] do TCE, 80% dos municípios do estado de São Paulo que receberam os recursos não prestaram conta corretamente sobre como os recursos recebidos por esse tipo de emenda foram gastos./’Os municípios têm a obrigação de ter um site, um portal, e colocar à disposição do cidadão essa informação: a emenda e o valor que foi recebido. Verificamos aí que mais de 80% não disponibilizaram essa informação’, disse” (fonte: g1.globo.com).

Os Estados e Municípios destinatários das “emendas pix” não estão obrigados a prestar contas da aplicação dos recursos ao governo federal. O TCU (Tribunal de Contas da União) não tem competência para fiscalizar os recursos e suas aplicações. Esse cenário aponta para um considerável enfraquecimento do controle porque afasta justamente o órgão fiscalizador menos influenciado pelo jogo político regional ou local.

A Transparência Brasil, em documento de maio de 2023, destaca que as normas de execução orçamentária e financeira (Portaria Interministerial ME/SEGOV n. 6.411/2021 e Portaria Interministerial MPO/MGI/SRI-PR n. 1/2023) “… tornam facultativa a prestação de contas” das “emendas pix”. Assim, ficam irremediavelmente comprometidas a transparência e o controle social em relação a uma montanha de recursos públicos recebidos por Estados e Municípios.

Esse quadro exige um conjunto de providências, em relação às “emendas pix”, que passam por: a) limites de utilização nas leis orçamentárias; b) alterações nas portarias referidas para estabelecer expressamente a obrigação de prestação de contas nas plataformas informatizadas federais pertinentes; c) celebração de acordo de cooperação técnica entre os órgãos de controle externo federal, distrital, estaduais e municipais e d) previsão legal para a adequada transparência e prestação de contas.

Essas e muitas outras mazelas presentes na vida nacional somente serão superadas com a inserção dos interesses populares no centro da ação política. Conscientização, organização e mobilização em torno dos interesses da maioria da sociedade precisam efetivamente animar a ocupação dos principais espaços de poder. Infelizmente, estamos muito longe desse desejável quadro.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional