— Absurdo, inaceitável! Um ataque à democracia que precisa ser repudiado! (Senador Omar Aziz, PSD/AM)
— Patética demonstração de fraqueza, para esconder o que realmente importa: o balcão de negócios em que foi transformado o Ministério da Saúde. (Senador Randolfe Rodrigues, Rede/AP)
Assim os senadores Omar Aziz (presidente) e Randolfe Rodrigues (vice-presidente) abriram a primeira sessão da CPI da Covid no Senado Federal na segunda semana após o recesso. A CPI teve a concorrência de um fato político inusitado, que dá conta da escalada autoritária desesperada do governo Bolsonaro: um desfile de blindados, tanques e anfíbios da Marinha, na Esplanada dos Ministérios, no começo da manhã de terça-feira (11/08), mesmo dia em que o plenário da Câmara Federal votaria a PEC do “voto impresso” — último cavalo de batalha do ocupante do Palácio do Planalto. No final da noite, os parlamentares rejeitaram a PEC do voto impresso.
Os analistas políticos dos principais veículos de comunicação que cobrem os trabalhos da CPI convergem que a principal investigação feita pelos parlamentares, até este momento, envolve o esquema da compra da Covaxin — vacina indiana cujo contrato de compra na ordem de R$ 1,6 bilhão. Já assinado com a Precisa Medicamentos, com dinheiro disponível para esse fim, o contrato acabou sendo cancelado em função dos fortes indícios de corrupção envolvendo a empresa e o primeiro escalão do Ministério da Saúde, na gestão do general Eduardo Pazuello. Na realidade, além dos parlamentares da CPI, a sociedade brasileira foi surpreendida pela decisão inusitada do Ministério da Saúde de impor um sigilo de 100 anos na documentação que envolve a compra da Covaxin. Por que tanto pavor da transparência?
Sigilo de 100 anos…
A rigor, não se trata de uma novidade. A “regra dos 100 anos” já tinha sido aplicada pelo governo de Bolsonaro no caso dos gastos com o “cartão corporativo” da Presidência da República; retornou à cena com o processo envolvendo o ex-ministro Pazuello, no caso da participação em ato político no Rio de Janeiro; e, recentemente, voltou a ser usado no caso dos contatos dos filhos do presidente com o Palácio do Planalto. Agora, quando a CPI da Covid chegou ao esquema “Covaxin”, o governo tenta o mesmo recurso — que fere frontalmente o princípio da publicidade e da transparência dos atos dos poderes públicos. Passa a ser regra, e não exceção.
Como revela o Portal UOL, “o valor do negócio para a Covaxin, de R$ 1,6 bilhão, chegou a ser empenhado (reservado para esse fim) pelo governo federal. O acordo, porém, acabou suspenso depois que os irmãos Miranda (Luis Ricardo, servidor federal; Luis Cláudio Miranda, deputado federal por Brasília) trouxeram à tona suspeitas de corrupção dentro do ministério e possível pressão interna para que o processo de importação fosse acelerado à revelia de inconsistências contratuais”.
Tal decisão deve ser derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF), seja por iniciativa da CPI ou dos veículos de comunicação que pediam informações, amparados na LAI – Lei de Acesso à Informação Pública. O governo federal busca, ao que tudo indica, apenas ganhar tempo, na esperança talvez de solapar um dos principais feitos da CPI até aqui: o desvelamento de um esquema de corrupção na compra de vacinas dentro do Ministério da Saúde.
Silêncio, fake news e charlatanismo
O primeiro depoimento da semana foi do tenente-coronel Helcio Bruno de Almeida. Apresentado no Jornal Nacional como “um personagem envolvido nas negociações suspeitas de vacina da Davati”, ganhou um destaque na edição de terça (10/08), em reportagem do jornalista Júlio Mosquéra (com quase 5 minutos de duração). Almeida é presidente do Instituto Força Brasil, uma destacada entidade da rede bolsonarista na internet, “acusada pela cúpula da CPI de patrocinar campanhas contra vacinas, em defesa de medicamentos sem eficácia contra a Covid e antidemocráticas contra a própria comissão e o Supremo Tribunal Federal”.
O virulento agente de redes sociais, que chamara a CPI de “palhaçada” e “circo” em postagens nas redes sociais, recuou, pediu desculpas à senadora Simone Tebet (MDB/MS) e clamou a Deus, apelando mais de 50 vezes ao seu “direito de permanecer em silêncio” — pela enésima vez concedido pelo STF, supostamente para evitar sua autoincriminação. Mosquéra, aliás, ironizou esse direito ao silêncio do militar: “Apesar de defender publicamente a destituição de ministros do STF, o coronel recorreu ao tribunal para pedir o direito de permanecer em silêncio. E conseguiu numa liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia, contra quem ele fez campanha nas redes sociais”.
No final, pouco ou nada de novo trouxe à investigação parlamentar. Restou ao militar a inexplicável ligação com o cabo Luiz Dominghetti, suposto representante da empresa americana Davati, o reverendo Amilton Gomes de Paula e o então secretário-executivo do Ministério da Saúde, coronel Élcio Franco — todos, militares e pastor, envolvidos na fantasiosa venda de 400 milhões de dose da vacina AstraZeneca — que negou categoricamente ser representada pela Davati.
O segundo depoimento da semana foi de Jailton Batista, diretor-executivo da Vitamedic, fabricante do vermífugo ivermectina, usado há mais de 40 anos contra vermes, parasitas e até ácaros. Da noite para o dia, o governo negacionista passou a divulgar que o remédio prevenia a infecção pelo coronavírus — o próprio presidente da República foi o principal garoto-propaganda. Batista, que não teve o benefício do silêncio garantido pelo STF, revelou algumas coisas entranhas da relação entre a cúpula do Executivo Federal e um esquema de negócios, divulgação de fake news, bem como a aposta cega num medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19.
O jornalista Renato Machado, da Folha de S.Paulo destaca que Barbosa confirmou em “seu depoimento, a empresa faturou R$ 15,7 milhões em 2019, quantia que passou para R$ 470 milhões no ano passado”. Em fevereiro de 2021, a Vitamedic financiou uma publicidade (nos oito maiores jornais impressos do país, incluindo a própria Folha de S.Paulo) cujo custo total foi de R$ 717 mil. A peça publicitária, assinada pela Associação Médicos Pela Vida, um movimento assumidamente bolsonarista, defendia o kit-Covid (com o uso cloroquina e ivermectina) e o tratamento precoce, ambos descartados por cientistas de todo o mundo e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os senadores exibiram peças publicitárias (outdoors) e anúncios na internet, em redes sociais, bancados pela farmacêutica produtora do remédio para vermes, que vendia com reiteradas intervenções públicas de Bolsonaro pró-Ivermectina, num conjunto que, segundo os senadores da CPI, configura crimes de “charlatanismo” e “curandeirismo”. Os portais UOL, Terra, e as edições online dos jornais Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo convergiram os destaques da CPI nessa direção.
A semana vai fechar com a oitiva do líder do governo Bolsonaro na Câmara Federal, o deputado Ricardo Barros (PP-PR). Sobre ele, pesa a acusação do deputado Luis Miranda (DEM-DF), que em depoimento à CPI no final de junho revelou que o nome de Barros fora citado pelo presidente da República, ligando o parlamentar paranaense às “denúncias de irregularidades na compra da vacina Covaxin”. A ver os desdobramentos desse depoimento que pode levar a CPI à antessala do gabinete presidencial, no Palácio do Planalto, em definitivo.
P.S. (Atualização, às 15h48min): A questão do sigilo, registrada neste texto, foi resolvida pelo plenário da CPI como primeiro ato, na abertura da sessão desta quinta-feira (12/08), por questão de ordem da senadora Simone Tebet (MDB/MS). A tentativa de impor sigilo ao processo envolvendo a compra da vacina Covaxin foi derrubada — por unanimidade — pela CPI, que tem poderes legais para tanto, reafirmando a liberação dos documentos à imprensa e qualquer cidadã ou cidadão interessado, via Lei de Acesso à Informação Pública (LAI). O depoimento do líder bolsonarista foi extremamente tumultuado: interrompido uma vez e suspenso; ao final retomado e definitivamente suspenso, com a mudança de caráter da presença de Barros na CPI, agora como “convocado” e não mais como “convidado”, a condição de hoje, em data a ser marcada.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Samuel Pantoja Lima é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.