Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O país das tornozeleiras eletrônicas

A imprensa não precisa mais se preocupar com falta de manchetes de primeira página. Basta colocar um plantonista na porta da Polícia Federal em cada capital estadual e diariamente, haverá, pelo menos uma grande operação, com nomes pomposos, para atrair a atenção do público e assustar os corruptos espalhados por todo o país.

E quem quiser ganhar dinheiro rápido é só montar uma fábrica de tornozeleiras eletrônicas porque o mercado consumidor está em expansão, a oferta é reduzida e o produto está em falta no mercado, pelo menos segundo a polícia e os guardas penitenciários.

Nunca assistimos a uma sucessão tão grande de denúncias de irregularidades sendo apontadas pelas diferentes delegacias da PF. A de Curitiba perdeu o monopólio das manchetes para outras delegacias depois que a operação Lava Jato deixou de ser apenas um inquérito para se transformar numa bandeira politica.

O país vive hoje sob a égide da luta contra corrupção e a multiplicação de manchetes alimentadas pela PF mostra que estamos chegando a uma encruzilhada: ou se investiga tudo a fundo e o país será colocado de pernas para o ar ou ficamos só nas piruetas mediáticas que alimentam discursos tonitruantes mas que acabam em pizza.

A dieta quotidiana de casos de corrupção escancarados para a opinião pública assusta os cidadãos porque estamos conhecendo evidências cada vez mais claras de que a honestidade está se tornando uma exceção no Brasil, tal o número e volume de malfeitos com o dinheiro público. Também restam cada vez menos dúvidas de que o assalto aos cofres públicos foi institucionalizado e que aumentou extraordinariamente a dificuldade em saber em que confiar em se tratando de políticos, parlamentares, empresários e até na justiça.

O ritmo quase diário de novos casos de corrupção em investigação  gera interrogações sobre a capacidade dos órgãos policiais desenvolverem uma apuração idônea e do sistema judicial encaminhar com a devida rapidez e isenção o julgamento de acusados e suspeitos. Se antes da atual ofensiva anticorrupção a justiça e a polícia já enfrentavam críticas por lentidão ou ineficiência, agora com o volume crescente de casos sob investigação ou em julgamento tende a agravar os dilemas enfrentados por ambas instituições. O problema é que o corporativismo pode ofuscar a necessidade de espírito público na busca de soluções para questões salariais e operacionais.

Nós, os náufragos

Mas o  problema mais grave é o crescimento da consciência de que, nós os cidadãos, estamos virando náufragos num mar de corrupção cujos limites desconhecemos e, de alguma forma, temos até medo de conhecer.  A Lava Jato desencadeou, independente de suas motivações iniciais, a desmontagem de um sistema de desvio de dinheiro oriundo de impostos e taxas que não deveria ser interrompido.

Está claro que o começo da operação visava tirar o PT e a presidente Dilma Rousseff do poder, mas a dinâmica deflagrada pelas delações premiadas e pelo salve-se quem puder de acusados e suspeitos criou uma nova situação, que atropelou os objetivos iniciais. Agora não é mais o só o PT que está em questão mas toda uma estrutura de gestão dos recursos públicos.

A consciência do cidadão foi sacudida pela espetacularidade das operações da PF. O que impressiona não é mais a identidade e filiação dos protagonistas do desfile diário de circunspectos empresários e políticos chegando para depor nas delegacias da Polícia Federal, mas a diversidade e dimensão das denúncias dos casos em investigação.

No início eram as empreiteiras superfaturando para financiar o financiamento de campanhas eleitorais de partidos e políticos. As últimas operações, no entanto, mostram empresários embolsando pessoalmente o dinheiro desviado de obras e serviços públicos.  O que assistimos nos telejornais e jornais nos transmite a sensação de que em matéria de gestão e uso de verbas estatais estamos numa verdadeira “casa da mãe Joana”, em todo o país.

Tal volume de malfeitos empurra a sociedade para uma situação em que, se ela não fizer nada, acabará sendo cúmplice. E é ai que entram em cena a transparência e a informação.  Sem transparência sobre as investigações e denúncias, a sociedade ficará a mercê da manipulação de dados e fatos.  Seremos protagonistas involuntários de uma farsa político-jurídica. Dai a importância do papel da Polícia Federal , do Ministério Público e dos tribunais na divulgação dos fatos e do contraditório na apuração das denúncias. A falta de transparência alimenta o vírus da suspeita sobre as ações policiais e judiciais e aí todo o processo de higienização da coisa pública vai pro brejo.

Mas para que a transparência comprove que o objetivo predominante nas investigações é do interesse dos cidadãos é indispensável que a imprensa veicule os dados coletados pelos investigadores e monitore o andamento dos processos judiciais para que a população tenha como cobrar resultados capazes de moralizar o governo e os prestadores de serviços a órgãos públicos. Sem informações fidedignas, contextualizadas e isentas de viés partidário, a imprensa também acaba sob suspeita e por conta disto, enquadrada pela opinião público como cúmplice da corrupção.

Tudo isto nos mostra que o destino da Lava Jato e a sonhada moralização da coisa pública está mais nas mãos de todos nós cidadãos, do que nas da PF, do Ministério Público ou do Supremo Tribunal Federal. Não é uma constatação agradável porque fomos educados a depender do governo e a esperar sempre por um salvador da pátria. A Lava Jato está nos mostrando que não dá mais para continuar pensando assim, num sistema politico onde as tornozeleiras passaram a ser uma vergonhosa rotina.

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Carlos Castilho é jornalista, editor do Observatório da Imprensa e faz pos-doutorado em Jornalismo, no POSJOR/UFSC