Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Confiança nas notícias e percepções sobre jornalismo: os que menos confiam não necessariamente são hostis, mas indiferentes

Foto: wirestock

Um dos principais desafios para o jornalismo no que concerne à construção de confiança nas notícias não é hostilidade, mas indiferença. Este é um dos achados centrais do relatório “Overcoming indifference: What attitudes toward news tell us about building trust”, publicado pelo Reuters Institute for the Study of Journalism. Os resultados apontam que os cidadãos que não confiam nas notícias não necessariamente são os que mais expressam críticas à cobertura noticiosa. Na realidade, eles tendem ter menos conhecimento e interesse sobre a prática jornalística. Em geral, eles detêm menos opiniões a respeito do jornalismo e são menos propensos a dizer que se importam sobre como as notícias funcionam.

A pesquisa quantitativa é parte do Trust in News Project e baseia-se em surveys realizados no Brasil, Índia, Estados Unidos e Reino Unido com aproximadamente 2000 pessoas em cada país. No Brasil, a pesquisa foi realizada por telefone e busca ser representativa da população. Os entrevistados foram perguntados sobre suas atitudes a respeito de notícias e como encaram o papel do jornalismo na sociedade, além de informações demográficas.

Os resultados revelam que as pessoas normalmente confiam mais nas fontes de informação que elas usam, apesar de considerável parcela indicar que confia nas informações reportadas pela mídia em geral. O relatório trabalha com três categorias para o nível de confiança dos respondentes, dividindo-os entre os que geralmente não confiam, os que confiam seletivamente e os que geralmente confiam. Os grupos foram definidos de acordo com a quantidade de marcas que os entrevistados dizem confiar em alguma medida ou completamente. No Brasil, 17% geralmente não confiam, 50% confiam seletivamente e 17% geralmente confiam nas organizações noticiosas. 7% não confiam em nenhuma marca e 9% confiam em todas. A partir dos dados, é possível traçar um perfil sobre os entrevistados que geralmente não confiam nas empresas jornalísticas. No caso do Brasil, eles tendem a ser mais velhos, brancos, homens e mais propensos a avaliar o presidente Jair Bolsonaro de maneira favorável.

Confiança nas notícias e atitudes a respeito do jornalismo

As principais diferenças entre os grupos que não confiam nas notícias e os que confiam referem-se às atitudes diante do jornalismo. De maneira geral, os entrevistados nos quatro países têm percepções negativas sobre princípios jornalísticos. O mesmo acontece no Brasil, onde 27% dos que geralmente não confiam dizem que os jornalistas checam suas informações, contra 43% entre os que geralmente confiam. A porcentagem geral no país é de 36%. A situação é semelhante em relação a preocupações com manipulação da audiência. 43% dos entrevistados brasileiros dizem que os jornalistas tentam manipular o público. Entre os que geralmente não confiam, 64% dizem o mesmo, contra 33% entre entrevistados que geralmente confiam nas notícias.

Os cidadãos que geralmente não confiam nas notícias também prestam menos atenção e são mais indiferentes à prática jornalística. Nos quatro países, os que têm maior grau de confiança também tendem a valorizar transparência a respeito de como as notícias são produzidas. No Brasil, 81% dizem que é muito ou extremamente importante saber como as organizações noticiosas selecionam as fontes para as matérias. A porcentagem cai para 68% entre os que geralmente não confiam e sobe para 89% entre os que geralmente confiam. Os resultados não são um sinal de que transparência seja irrelevante para as audiências, mas que tende a ser mais valorizada por segmentos específicos. A implicação é que, em um cenário no qual estão diante de grande oferta de fontes de informação e não têm ferramentas para selecionar quais são confiáveis, boa parte dos indivíduos adota uma postura cética em relação a todas elas.

Em alguns casos, a suspeita em relação à atuação do jornalismo perpassa diferentes graus de confiança. 78% dos brasileiros dizem que as organizações noticiosas tentam encobrir seus erros. Mesmo entre os que geralmente confiam, 74% dos entrevistados afirmam o mesmo. Os resultados são indícios de que algumas percepções negativas estão tão arraigadas com as audiências que mesmo aqueles com grau de confiança acima da média tendem a mantê-las. No caso brasileiro, é possível que se trate de uma combinação de insatisfação com o conteúdo oferecido pela cobertura jornalística junto a compreensões compartilhadas a respeito de como o jornalismo no país funciona.

Alguns valores parecem solidificados entre os brasileiros

Se, em geral, os resultados revelam uma tendência a avaliar a atuação do jornalismo de forma negativa, alguns valores parecem solidificados entre os entrevistados brasileiros. 86% deles concordam em alguma medida ou fortemente que jornalistas devem fiscalizar os agentes políticos independentemente do partido político ao qual pertençam. Há pouca diferença entre os que geralmente não confiam (81% concordam com a afirmação) e os que geralmente confiam (89%), indicando que o papel de jornalismo como cão de guarda do campo político é uma das expectativas importantes a respeito da atividade.

Outro ponto de convergência entre os entrevistados brasileiros é a rejeição à censura. 86% dos entrevistados no país concordam fortemente ou em alguma medida que as pessoas devem ter o direito de criticar o governo e 78% afirmam que a mídia deve ser capaz de reportar as notícias sem censura do governo. Os percentuais pouco se alteram de acordo com o grau de confiança nas notícias. É possível que o passado recente de ditadura militar com censura ao jornalismo mantenha a rejeição a tais intervenções, mesmo com ataques ao regime democrático proferidos pelo presidente Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, merece atenção o fato de que confiança nas notícias é fortemente correlacionada com satisfação com a democracia nos outros países, mas não no Brasil. Praticamente não há diferença entre os que geralmente não confiam e os que geralmente confiam a respeito de como avaliam a democracia no Brasil, com aproximadamente 60% de insatisfeitos na população em geral e nos grupos específicos. Os resultados não medem apoio ao regime democrático, mas mostram que a insatisfação com a democracia brasileira é compartilhada por parcela significativa dos respondentes.

Como atingir os que geralmente não confiam?

Como os nossos resultados demonstram, uma limitação relevante para a construção de confiança nas notícias é a indiferença de segmentos da população em direção ao jornalismo. Mais que hostilidade, tais indivíduos têm dificuldade de perceber a relevância de consumir notícias — e frequentemente as organizações noticiosas sofrem para demonstrá-la. Diante disso, torna-se mais complicado engajar tais segmentos, especialmente considerando as limitações do jornalismo em lidar com minorias e grupos desfavorecidos na sociedade.

Alguns caminhos possíveis são uma comunicação eficiente a respeito do que o jornalismo oferece e porque é diferente dos outros tipos de informação disponível, bem como o desenvolvimento de estratégias direcionadas a atingir audiências com as quais normalmente as marcas não dialogariam. Ademais, há um desafio do ponto de vista editorial, que pode envolver uma revisão das prioridades de reportagem de forma a atingir aqueles que não necessariamente estão interessados em notícias de antemão. Evidentemente, estes caminhos não são universais, mas podem ser pontos de partida para engajar audiências diferentes daqueles que já são usualmente interessados e que, em um cenário de muitas opções disponíveis e fragmentação, podem não ser suficientes para que o jornalismo cumpra sua função primordial de oferecer informações atualizadas e precisas sobre os principais acontecimentos em uma sociedade.

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Camila Mont’Alverne é pesquisadora de pós-doutorado no Reuters Institute, Universidade de Oxford, e doutora em Ciência Política pela UFPR.